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quinta-feira, 29 de março de 2012

Culturas da saúde

Toda pessoa tem um calango que mora no meio do peito. Quando ele sai passeando pelo corpo, causa o quebranto. A cura vem de ervas que façam esse lagarto interior voltar para seu lugar. Entender as propriedades das plantas medicinais usadas em cada cultura não é uma tarefa simples, mas o trabalho do etnofarmacólogo vai muito mais longe: ele precisa entender doenças que não se encaixam naquelas tratadas pela medicina convencional, por isso denominadas “síndromes culturais” no sistema oficial de saúde. É essa a missão da bióloga especializada em etnofarmacologia Eliana Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) de Diadema, que há 15 anos investiga o conhecimento medicinal de diferentes culturas brasileiras.
“O índio trata a doença e usa uma planta para cada enfermidade”, exemplifica a pesquisadora, coordenadora do Centro de Estudos Etnobotânicos e Etnofarmacológicos (CEE). “O negro, ao contrário, usa misturas e pode tratar de formas diferentes as dores de cabeça de uma pessoa e de outra – o que conta são as particularidades de cada um.” Outra distinção entre culturas é que cada xamã indígena tem o seu conhecimento particular, a sua coleção de plantas na farmácia da floresta. Já os caboclos, segundo a pesquisadora, cultivam um conhecimento difuso que recolhem de diferentes culturas e diferentes origens geográficas.
Essa farmacopeia variada é o tema do estudo de Eliana em sete comunidades ribeirinhas ao longo do rio Unini, no norte do Amazonas. Para chegar às cidades mais próximas, Barcelos e Novo Airão, é preciso navegar no mínimo 250 quilômetros pelo rio Negro. Os habitantes da região, uma reserva extrativista, têm ascendência indígena, africana e europeia. No século XIX uma onda migratória do Ceará se instalou por ali em busca de trabalho nos grandes seringais, contribuindo para a cultura local com um forte componente desse estado nordestino.
Já faz parte da lista levantada por Juliana Santos, uma das integrantes da equipe do CEE, um total de 122 espécies de plantas e 57 de animais, indicadas para 67 usos terapêuticos. As pesquisas mostram, até agora, uma grande diversidade de produtos psicoativos de vários tipos: estimulantes, ansiolíticos, afrodisíacos, calmantes etc. Até agora, Eliana catalogou 31 espécies de plantas e animais usadas para esses fins. As plantas podem fornecer uma variedade de partes, como caule, folhas, casca, sementes e frutos. Já dos animais se usa a carne, o cérebro, o pênis, ossos ou até o corpo inteiro. O chá de saúva, por exemplo, é usado para eliminar a preguiça, numa referência à reputação de trabalhadeiras que essas formigas têm. “Mas hoje poucos ribeirinhos usam a medicina tradicional, a maioria deles vão ao posto de saúde da comunidade e buscam remédios que usam de maneira indiscriminada”, lamenta. O problema surge porque esse tipo de atendimento é instalado sem o acompanhamento de um profissional qualificado. “São agentes de saúde com pouco treinamento.”
Cicatrizantes das plantas
Também são muitas as substâncias usadas para as chamadas síndromes culturais, que o médico Eduardo Pagani, ao participar do estudo em trabalho de campo na Amazônia, verificou não terem tradução direta na medicina convencional. É o caso do quebranto, do derrame, do espante e da mãe do corpo, entre outras doenças. Alguns dos preparados medicamentosos para esse tipo de enfermidade não vêm das partes tradicionais das plantas, mas de substâncias que elas vertem, os exsudados. Exemplos são o breu-branco e o breu-preto, além do lacre, que libera um líquido laranja.
E os exsudados não se restringem às plantas. A baba do sapo-canuaru, uma perereca malhada de marrom e bege, é usada contra dor de cabeça. O produto forma uma pedra escura, que os ribeirinhos maceram e envolvem num pedaço de pano, que em seguida queimam e inalam. “O uso dos exsudados é geralmente inalatório”, observa Eliana. Mas ela não está convencida de que se trate mesmo da saliva solidificada do anfíbio. Neste mês, a etnofarmacóloga está nas comunidades para aprender a encontrar a substância e verificar a sugestão feita no século XIX pelo naturalista João Barbosa Rodrigues: o sapo-canuaru recolhe breu-branco de troncos podres de árvores do gênero Protium e usa essa resina para revestir seu ninho. Assim, a tal baba de sapo seria o breu-branco enriquecido com secreções da pele do animal.

Fonte: Pesquisa FAPESP

Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/01/18/culturas-da-saude/>. Acesso em: 29 mar. 2012.

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