No último dia 20 de março, a morte de Graciliano Ramos completou 60 anos. Seis décadas sem a caneta áspera e feroz do autor, que é um dos gênios da literatura brasileira e por isso o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2013. O distanciamento da data não torna a obra do escritor alagoano menos relevante. Ao contrário: é aí que se percebe como o termo imortal faz todo o sentido quando colado a autores como ele, que nem chegou a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL). Quase 80 anos depois da publicação de Vidas Secas (1938), um retrato cru das dificuldades climáticas enfrentadas no interior do Nordeste, o sertão tem a pior seca dos últimos 40 anos, de acordo com a Defesa Civil da Bahia.
No campo econômico e social, presente também em São Bernardo (1934), outro romance que se candidata a obra-prima de Graciliano, a situação não está muito melhor. No Índice de Desenvolvimento Humano, ranking da ONU que mede a qualidade de vida de cada país com base na renda per capita, expectativa de vida e escolaridade da população, o Brasil amarga a 85ª posição, segundo dados de 2012. “Por mais que tenham se verificado avanços no país, algumas questões seguem aguardando soluções estruturais e definitivas”, diz Dênis de Moraes, autor da biografia O Velho Graça (Boitempo, 2012). Eram essas questões que impulsionavam Graciliano, nas crônicas e na ficção.
Para o biógrafo, o escritor demonstrava sério compromisso com o destino do brasileiro, principalmente daqueles que sofrem e são explorados. “Ele faz de seus escritos um instrumento de interpretação e intervenção na realidade social e política do país”, diz. O próprio Graciliano reconheceu a motivação em entrevista Ernesto Luiz Maia, pseudônimo de Newton Rodrigues, em 1944. "O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca", disse.
O alagoano, que foi preso pela polícia política de Getúlio Vargas em 1936 sem motivo concreto, prisão que depois dará origem ao romance autobiográfico Memórias do Cárcere (1953), se mostra crítico e rigoroso com qualquer tipo de opressão -- social, política, econômica ou mesmo afetiva, o que pode em parte ser explicado pela difícil relação que teve com os pais, duros e distantes.
Essas motivações pautam tanto Memórias do Cárcere como, por exemplo, São Bernardo, romance crítico sobre um fazendeiro ambicioso que coisifica as pessoas e estraga uma relação amorosa. O já citado Vidas Secas, sobre uma família de retirantes em busca de sobrevivência, ao passo que o agudo Angústia, de 1936, fala de um homem, Luís da Silva, que sofre tanto por se sentir inferiorizado quanto por perder a mulher que ama para o maior rival no campo amoroso e social, o gordo e rico Julião Tavares.
Em comum, essas obras têm também o olhar amplo de Graciliano, que analisava tanto os coletivos humanos quanto os indivíduos. É o que Dênis de Moraes aponta como conexão profunda do autor com as variações e as manifestações da alma humana. “A obra de Graciliano reflete sensibilidade para com as aspirações, as vicissitudes e as expectativas dos homens na sua passagem pelo mundo”, afirma o biógrafo.
Assim, o autor consegue se comunicar com todos os tempos históricos, contextos e situações que envolvem o indivíduo.
Linguagem – O apuro da escrita de Graça, como era chamado pelos amigos, também é apontada como um fator determinante para a sua permanência. Seus textos primavam pela linguagem, bela mas sem penduricalhos, e eram revisados diversas vezes para chegar ao o essencial - e à forma correta. "Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato", disse o escritor em entrevista a Homero Senna, em 1948, com o jeito ríspido que se tornou quase folclórico. Na mesma entrevista, Graciliano decretou também, sério e certeiro: "Não há talento que resista à ignorância da língua".
É possível dizer que os textos contundentes do alagoano não tinham qualquer excesso para não colocar nem a linguagem nem o conteúdo em risco. É como se para o escritor não houvesse embate entre ética e estética -- as duas eram uma coisa só, trabalhavam juntas para contar uma história, sem ceder a vaidade ou clichês. “Da mescla entre contenção formal e revolta temática, o artista extrai a sua força, que o engrandece e o afasta de qualquer esquematismo redutor”, diz Thiago Mio Salla, organizador do livro Garranchos (Record, 2012), que reúne crônicas de Graciliano publicadas na imprensa.
Outro ponto alto do texto de Graça, segundo Miguel Conde, o curador da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2013, que tem o alagoano como homenageado, é a maneira como ele relaciona a linguagem com a experiência de vida das personagens, especialmente em Vidas Secas, em que o sertanejo Fabiano e a família têm uma linguagem gutural. “O livro é muito mais que um simples romance documental, preocupado somente com as condições sociais do sertão brasileiro. Poucas pessoas abordam tão a fundo a relação entre linguagem e compreensão de mundo como Graciliano em Vidas Secas”, diz Conde.
No entanto, ainda que se expresse pelo uso da palavra escrita, o alagoano e sua obra estão longe de ser objeto de estudo somente de pesquisadores de literatura brasileira. Como lembra Mio Salla, multiplicam-se trabalhos de mestrado e doutorado sobre o autor nas mais diversas áreas, como educação, história e ciências sociais, que abordam diferentes aspectos de seus livros. “Graciliano Ramos é um dos principais artistas e intérpretes do país.”
Seus livros conseguem de fato, e com maestria, ultrapassar limites de disciplina teórica, data, local de publicação ou contexto histórico, e até hoje são lidos por aqueles que se interessam em conhecer um clássico universal da literatura. De acordo com Sylvio Back, diretor do documentário O Universo Graciliano, um perfil feito a partir de entrevistas com conhecidos do autor, a modernidade do escritor, a quem chama de “esfinge”, é inconteste. “Ele deixa uma obra sólida e incólume, inoxidável às intempéries político-ideológicas de seu tempo.”
Sim, Graciliano Ramos precisa ser lido.
No campo econômico e social, presente também em São Bernardo (1934), outro romance que se candidata a obra-prima de Graciliano, a situação não está muito melhor. No Índice de Desenvolvimento Humano, ranking da ONU que mede a qualidade de vida de cada país com base na renda per capita, expectativa de vida e escolaridade da população, o Brasil amarga a 85ª posição, segundo dados de 2012. “Por mais que tenham se verificado avanços no país, algumas questões seguem aguardando soluções estruturais e definitivas”, diz Dênis de Moraes, autor da biografia O Velho Graça (Boitempo, 2012). Eram essas questões que impulsionavam Graciliano, nas crônicas e na ficção.
Para o biógrafo, o escritor demonstrava sério compromisso com o destino do brasileiro, principalmente daqueles que sofrem e são explorados. “Ele faz de seus escritos um instrumento de interpretação e intervenção na realidade social e política do país”, diz. O próprio Graciliano reconheceu a motivação em entrevista Ernesto Luiz Maia, pseudônimo de Newton Rodrigues, em 1944. "O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca", disse.
O alagoano, que foi preso pela polícia política de Getúlio Vargas em 1936 sem motivo concreto, prisão que depois dará origem ao romance autobiográfico Memórias do Cárcere (1953), se mostra crítico e rigoroso com qualquer tipo de opressão -- social, política, econômica ou mesmo afetiva, o que pode em parte ser explicado pela difícil relação que teve com os pais, duros e distantes.
Essas motivações pautam tanto Memórias do Cárcere como, por exemplo, São Bernardo, romance crítico sobre um fazendeiro ambicioso que coisifica as pessoas e estraga uma relação amorosa. O já citado Vidas Secas, sobre uma família de retirantes em busca de sobrevivência, ao passo que o agudo Angústia, de 1936, fala de um homem, Luís da Silva, que sofre tanto por se sentir inferiorizado quanto por perder a mulher que ama para o maior rival no campo amoroso e social, o gordo e rico Julião Tavares.
Em comum, essas obras têm também o olhar amplo de Graciliano, que analisava tanto os coletivos humanos quanto os indivíduos. É o que Dênis de Moraes aponta como conexão profunda do autor com as variações e as manifestações da alma humana. “A obra de Graciliano reflete sensibilidade para com as aspirações, as vicissitudes e as expectativas dos homens na sua passagem pelo mundo”, afirma o biógrafo.
Assim, o autor consegue se comunicar com todos os tempos históricos, contextos e situações que envolvem o indivíduo.
Linguagem – O apuro da escrita de Graça, como era chamado pelos amigos, também é apontada como um fator determinante para a sua permanência. Seus textos primavam pela linguagem, bela mas sem penduricalhos, e eram revisados diversas vezes para chegar ao o essencial - e à forma correta. "Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato", disse o escritor em entrevista a Homero Senna, em 1948, com o jeito ríspido que se tornou quase folclórico. Na mesma entrevista, Graciliano decretou também, sério e certeiro: "Não há talento que resista à ignorância da língua".
É possível dizer que os textos contundentes do alagoano não tinham qualquer excesso para não colocar nem a linguagem nem o conteúdo em risco. É como se para o escritor não houvesse embate entre ética e estética -- as duas eram uma coisa só, trabalhavam juntas para contar uma história, sem ceder a vaidade ou clichês. “Da mescla entre contenção formal e revolta temática, o artista extrai a sua força, que o engrandece e o afasta de qualquer esquematismo redutor”, diz Thiago Mio Salla, organizador do livro Garranchos (Record, 2012), que reúne crônicas de Graciliano publicadas na imprensa.
Outro ponto alto do texto de Graça, segundo Miguel Conde, o curador da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2013, que tem o alagoano como homenageado, é a maneira como ele relaciona a linguagem com a experiência de vida das personagens, especialmente em Vidas Secas, em que o sertanejo Fabiano e a família têm uma linguagem gutural. “O livro é muito mais que um simples romance documental, preocupado somente com as condições sociais do sertão brasileiro. Poucas pessoas abordam tão a fundo a relação entre linguagem e compreensão de mundo como Graciliano em Vidas Secas”, diz Conde.
No entanto, ainda que se expresse pelo uso da palavra escrita, o alagoano e sua obra estão longe de ser objeto de estudo somente de pesquisadores de literatura brasileira. Como lembra Mio Salla, multiplicam-se trabalhos de mestrado e doutorado sobre o autor nas mais diversas áreas, como educação, história e ciências sociais, que abordam diferentes aspectos de seus livros. “Graciliano Ramos é um dos principais artistas e intérpretes do país.”
Seus livros conseguem de fato, e com maestria, ultrapassar limites de disciplina teórica, data, local de publicação ou contexto histórico, e até hoje são lidos por aqueles que se interessam em conhecer um clássico universal da literatura. De acordo com Sylvio Back, diretor do documentário O Universo Graciliano, um perfil feito a partir de entrevistas com conhecidos do autor, a modernidade do escritor, a quem chama de “esfinge”, é inconteste. “Ele deixa uma obra sólida e incólume, inoxidável às intempéries político-ideológicas de seu tempo.”
Sim, Graciliano Ramos precisa ser lido.
Fonte: Revista VEJA
Disponível em:<http://veja.abril.com.br/infograficos/especiais/graciliano-ramos/index.shtml>. Acesso em: 25 mar. 2013.
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