No mundo, 450 milhões de pessoas enfrentarão doenças mentais ao longo da vida. Abordaremos o problema em uma série de três matérias. Na estreia, a ênfase é no transtorno borderline
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), 20% da população adolescente e infantil do mundo terá algum problema mental. A depressão, doença atribuída por muitos à moderna rotina individualista e competitiva, está entre as mais presentes nos consultórios — e na vida — dos brasileiros. Ainda de acordo com a ABP, 10% da nação sofrem de tristeza crônica. A OMS contabiliza 154 milhões de deprimidos. A previsão do órgão é de que 450 milhões manifestarão algum problema mental, neurológico ou comportamental ao longo da vida. Em uma série de três reportagens, a Revista vai explorar um pouco do bastante estudado — porém, sempre intrigante — universo das doenças mentais.
Tanta gente enclausurada em sua própria mente adoecida preocupa médicos, familiares e, principalmente, os doentes. Além de ter que se acostumar a policiar os próprios pensamentos e atos, o paciente encontra informações dúbias e, muitas vezes, errôneas. Bruna Franco, por exemplo, foi diagnosticada borderline aos 25 anos. À época, ela não fazia ideia do que a palavra significava. Uma pesquisa rápida foi o suficiente para deixá-la horrorizada. "As primeiras matérias e estudos científicos que vi, em sites brasileiros, foram desanimadores e, de certa forma, assustadores pelo fato de descreverem o indivíduo borderline como um monstro sem coração", descreve.
A noção de que o paciente borderline seria apenas "um sujeito emocionalmente instável que, com tratamento, poderia se recuperar totalmente" só se deu após mais horas e horas de buscas em sites especializados. Depois de algum tempo, Bruna resolveu repassar os conhecimentos que tinha e ajudar, com os próprios depoimentos, borders que se sentiam tão perdidos quanto ela. Criado e alimentado por ela e uma amiga (que não revela a identidade), o portal no YouTube Quebre o Silêncio já contabiliza 996 inscritos e quase 160 mil visualizações. A troca de informações na internet, a terapia constante e o treinamento pessoal foram a base necessária para Bruna se compreender. "Acho que é difícil para qualquer um olhar para si mesmo e admitir falhas e limitações", acrescenta. "Aprendi a separar o que era minha responsabilidade e o que não era."
Bruna entendeu que a forma com que lida com a própria família, que considera "disfuncional, sem espaço para defeitos ou falhas", bem como a relação que tinha com os namorados, marcada quase sempre por cobranças irreais e críticas ferrenhas, tinha solução. "Era muito difícil, eu era muito crítica comigo e, consequentemente, com eles também", descreve. "Havia um grande medo da rejeição, de não saber lidar com a dor da perda." A incompreensão dos parentes e amigos reforça o medo de ser abandonado vivido pelos que sofrem de doenças mentais. No caso de Bruna, frases como "ela só quer chamar a atenção" ou "é falta do que fazer" eram frequentes. "Muitas pessoas acabam culpando um indivíduo por não suportar a sua própria dor", diz a jovem.
Entenda as diferenças
Transtornos de humor ou afetivos
São aqueles em que há a variação de humor, pensamento, comportamento e ânimo. O paciente pode ter uma única crise ou várias ao longo da vida. Os episódios podem ser depressivos, em que a pessoa sente desânimo e tristeza em demasia, ou de mania, em que há euforia fora do comum. Os sintomas podem ainda ser uma mistura desses dois: são os estados mistos.
Exemplos: depressão, transtorno do humor bipolar, euforias e transtorno distímico.
Transtornos de personalidade
São transtornos que aparecem quando os traços da personalidade são desajustados, inflexíveis e prejudicam a adaptação do paciente. Não raro, causam sofrimento intenso ao doente e, principalmente, às pessoas ao redor. Como os danos a si próprio podem não ser tão perceptíveis para o paciente, não é incomum que não queiram tratamento. Aparecem em grande maioria no início da idade adulta, são crônicos e precisam de tratamento pela vida inteira.
Exemplos: transtorno de personalidade paranoide, transtorno de personalidade borderline, transtorno de personalidade narcisista e transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo.
Fonte: Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos
Soma de fatores
(Kleber Soares/CB/D.A.Press)
Os transtornos mentais não aparecem sem mais nem menos. Atualmente, a medicina já sabe que essas enfermidades precisam de um conjunto de fatores para vir à tona. É preciso um contexto biopsicossocial — a soma de genética, aspectos psicológicos e o ambiente em que a pessoa está inserida. O problema está lá, mas precisa de um gatilho para acontecer. "O transtorno mental é um processo que acontece ao longo dos anos", explica Elias Abdala Filho, psicanalista, membro e professor titular da Associação Brasileira de Psicologia (ABP). As patologias se manifestam gradativamente e, sem tratamento, a piora é inevitável.
Por isso, Abdala explica que não se faz o diagnóstico de problemas mentais em pacientes menores de idade. Antes dessa idade, os médicos consideram que a personalidade ainda não está completamente formada. Em crianças, o máximo que se pode fazer é apontar uma predisposição. "As manifestações do presente não são suficientes para configurar qualquer diagnóstico, mas, quando o adolescente começa a querer ter a própria identidade, fica mais fácil delimitar o problema", completa o psiquiatra.
Não é raro que essas manifestações passem despercebidas pelos pais. Irritabilidade, confusão, revolta ou agressividade já são comportamentos associados aos adolescentes. Assim como aconteceu com Bruna Franco, por vezes, as pessoas próximas dos doentes não entendem essas "explosões" como sintoma de que algo está errado, mas apenas como uma forma de chamar a atenção. "Os transtornos de personalidade têm níveis diferentes de gravidade", completa Abdala. "Muitos podem achar que um nível de irritabilidade elevado é só ‘frescura’, ou tendem a achar que o indivíduo é mimado e não consegue tolerar a contrariedade."
As doenças mentais não têm predileção de idade, mas há transtornos mais comuns para cada faixa etária. Fábio Aurélio Costa Leite, coordenador de Psiquiatria dos hospitais Santa Helena e Prontonorte, explica que os sintomas são observáveis já na infância, mas ficam mais latentes dependendo da idade do paciente. "O transtorno bipolar ‘aparece’ no adulto jovem, dos 16 aos 25 anos. A esquizofrenia também. O quadro paranoide costuma acontecer por volta dos 30 anos", enumera. Pessoas que estão no início da vida adulta e idosas estão entre os pacientes mais vulneráveis. No caso dos jovens, isso acontece pela vulnerabilidade intelectual natural do desenvolvimento humano. É nessa fase que se formam os grupos e que há a vontade de ser aceito, o que pode levar a um eventual uso de drogas para se equiparar aos amigos, por exemplo. A alta carga emocional da juventude, época de descobertas e cobranças, também facilita a instalação dos problemas mentais. Para os mais velhos, o que pesa é o medo da morte e a fragilidade do corpo.
Por enquanto, a medicina não sabe apontar essa predisposição. Leite diz que o procedimento atual é classificar os pacientes em população de risco e de ultrarrisco, de acordo com o estilo de vida e o histórico familiar para doenças mentais. Um jovem que tenha parentes doentes e se mantenha isolado faz parte do grupo de risco. "Tentamos evitar o primeiro episódio psicótico", explica o psiquiatra. Depois de detectar indícios que encaixem o paciente no grupo de risco ou de ultrarrisco, os especialistas decidem como agir: tratar preventivamente aquela pessoa ou não. "É um tema controverso, pois muitos médicos não concordam em usar antipsicóticos em garotos de 13 anos que ainda não tiveram crises, por exemplo."
Membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria (SBP), o médico Fernando Portela Câmara diz que entre as doenças mentais mais comuns no Brasil está o alcoolismo. De acordo com o psiquiatra, uma pesquisa mundial, feita ao longo de 20 anos e encerrada em 2012, revelou que o país é o mais afetado pelo excesso de álcool. A depressão aparece como o segundo problema mais frequente, seguido dos demais transtornos de humor e de ansiedade. "Os vícios também são considerados transtornos mentais e são os mais devastadores que existem", reforça. Entre dependentes químicos, as doenças psíquicas costumam se manifestar após um evento específico.
Câmara explica ainda que infecções severas, traumatismos, medicações fortes ou intoxicação por substâncias como metais pesados também estão entre os fatores ambientais que desencadeiam os males da mente. "O ambiente pode facilitar ou retardar a expressão dessas doenças", completa. O estresse emocional também é um fator determinante. Pessoas que vivem em condições de extrema pobreza, em uma realidade repressora ou em um ambiente familiar pouco amigável são as mais propícias a ver a doença sair do casulo mental. Esse é o motivo, de acordo com o médico, dos presídios estarem abarrotados de doentes mentais.
Leia na edição impressa uma entrevista com Ana Beatriz Barbosa Silva, médica-psiquiatra e autora de Mentes inquietas (2003), Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado (2008) e outros livros sobre transtornos de personalidade. Seu último livro, Corações descontrolados: ciúmes, raiva, impulsividade — o jeito borderline de ser, foi lançado em 2012.
Tanta gente enclausurada em sua própria mente adoecida preocupa médicos, familiares e, principalmente, os doentes. Além de ter que se acostumar a policiar os próprios pensamentos e atos, o paciente encontra informações dúbias e, muitas vezes, errôneas. Bruna Franco, por exemplo, foi diagnosticada borderline aos 25 anos. À época, ela não fazia ideia do que a palavra significava. Uma pesquisa rápida foi o suficiente para deixá-la horrorizada. "As primeiras matérias e estudos científicos que vi, em sites brasileiros, foram desanimadores e, de certa forma, assustadores pelo fato de descreverem o indivíduo borderline como um monstro sem coração", descreve.
A noção de que o paciente borderline seria apenas "um sujeito emocionalmente instável que, com tratamento, poderia se recuperar totalmente" só se deu após mais horas e horas de buscas em sites especializados. Depois de algum tempo, Bruna resolveu repassar os conhecimentos que tinha e ajudar, com os próprios depoimentos, borders que se sentiam tão perdidos quanto ela. Criado e alimentado por ela e uma amiga (que não revela a identidade), o portal no YouTube Quebre o Silêncio já contabiliza 996 inscritos e quase 160 mil visualizações. A troca de informações na internet, a terapia constante e o treinamento pessoal foram a base necessária para Bruna se compreender. "Acho que é difícil para qualquer um olhar para si mesmo e admitir falhas e limitações", acrescenta. "Aprendi a separar o que era minha responsabilidade e o que não era."
Bruna entendeu que a forma com que lida com a própria família, que considera "disfuncional, sem espaço para defeitos ou falhas", bem como a relação que tinha com os namorados, marcada quase sempre por cobranças irreais e críticas ferrenhas, tinha solução. "Era muito difícil, eu era muito crítica comigo e, consequentemente, com eles também", descreve. "Havia um grande medo da rejeição, de não saber lidar com a dor da perda." A incompreensão dos parentes e amigos reforça o medo de ser abandonado vivido pelos que sofrem de doenças mentais. No caso de Bruna, frases como "ela só quer chamar a atenção" ou "é falta do que fazer" eram frequentes. "Muitas pessoas acabam culpando um indivíduo por não suportar a sua própria dor", diz a jovem.
Entenda as diferenças
Transtornos de humor ou afetivos
São aqueles em que há a variação de humor, pensamento, comportamento e ânimo. O paciente pode ter uma única crise ou várias ao longo da vida. Os episódios podem ser depressivos, em que a pessoa sente desânimo e tristeza em demasia, ou de mania, em que há euforia fora do comum. Os sintomas podem ainda ser uma mistura desses dois: são os estados mistos.
Exemplos: depressão, transtorno do humor bipolar, euforias e transtorno distímico.
Transtornos de personalidade
São transtornos que aparecem quando os traços da personalidade são desajustados, inflexíveis e prejudicam a adaptação do paciente. Não raro, causam sofrimento intenso ao doente e, principalmente, às pessoas ao redor. Como os danos a si próprio podem não ser tão perceptíveis para o paciente, não é incomum que não queiram tratamento. Aparecem em grande maioria no início da idade adulta, são crônicos e precisam de tratamento pela vida inteira.
Exemplos: transtorno de personalidade paranoide, transtorno de personalidade borderline, transtorno de personalidade narcisista e transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo.
Fonte: Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos
Soma de fatores
(Kleber Soares/CB/D.A.Press)
Os transtornos mentais não aparecem sem mais nem menos. Atualmente, a medicina já sabe que essas enfermidades precisam de um conjunto de fatores para vir à tona. É preciso um contexto biopsicossocial — a soma de genética, aspectos psicológicos e o ambiente em que a pessoa está inserida. O problema está lá, mas precisa de um gatilho para acontecer. "O transtorno mental é um processo que acontece ao longo dos anos", explica Elias Abdala Filho, psicanalista, membro e professor titular da Associação Brasileira de Psicologia (ABP). As patologias se manifestam gradativamente e, sem tratamento, a piora é inevitável.
Por isso, Abdala explica que não se faz o diagnóstico de problemas mentais em pacientes menores de idade. Antes dessa idade, os médicos consideram que a personalidade ainda não está completamente formada. Em crianças, o máximo que se pode fazer é apontar uma predisposição. "As manifestações do presente não são suficientes para configurar qualquer diagnóstico, mas, quando o adolescente começa a querer ter a própria identidade, fica mais fácil delimitar o problema", completa o psiquiatra.
Não é raro que essas manifestações passem despercebidas pelos pais. Irritabilidade, confusão, revolta ou agressividade já são comportamentos associados aos adolescentes. Assim como aconteceu com Bruna Franco, por vezes, as pessoas próximas dos doentes não entendem essas "explosões" como sintoma de que algo está errado, mas apenas como uma forma de chamar a atenção. "Os transtornos de personalidade têm níveis diferentes de gravidade", completa Abdala. "Muitos podem achar que um nível de irritabilidade elevado é só ‘frescura’, ou tendem a achar que o indivíduo é mimado e não consegue tolerar a contrariedade."
As doenças mentais não têm predileção de idade, mas há transtornos mais comuns para cada faixa etária. Fábio Aurélio Costa Leite, coordenador de Psiquiatria dos hospitais Santa Helena e Prontonorte, explica que os sintomas são observáveis já na infância, mas ficam mais latentes dependendo da idade do paciente. "O transtorno bipolar ‘aparece’ no adulto jovem, dos 16 aos 25 anos. A esquizofrenia também. O quadro paranoide costuma acontecer por volta dos 30 anos", enumera. Pessoas que estão no início da vida adulta e idosas estão entre os pacientes mais vulneráveis. No caso dos jovens, isso acontece pela vulnerabilidade intelectual natural do desenvolvimento humano. É nessa fase que se formam os grupos e que há a vontade de ser aceito, o que pode levar a um eventual uso de drogas para se equiparar aos amigos, por exemplo. A alta carga emocional da juventude, época de descobertas e cobranças, também facilita a instalação dos problemas mentais. Para os mais velhos, o que pesa é o medo da morte e a fragilidade do corpo.
Por enquanto, a medicina não sabe apontar essa predisposição. Leite diz que o procedimento atual é classificar os pacientes em população de risco e de ultrarrisco, de acordo com o estilo de vida e o histórico familiar para doenças mentais. Um jovem que tenha parentes doentes e se mantenha isolado faz parte do grupo de risco. "Tentamos evitar o primeiro episódio psicótico", explica o psiquiatra. Depois de detectar indícios que encaixem o paciente no grupo de risco ou de ultrarrisco, os especialistas decidem como agir: tratar preventivamente aquela pessoa ou não. "É um tema controverso, pois muitos médicos não concordam em usar antipsicóticos em garotos de 13 anos que ainda não tiveram crises, por exemplo."
Membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria (SBP), o médico Fernando Portela Câmara diz que entre as doenças mentais mais comuns no Brasil está o alcoolismo. De acordo com o psiquiatra, uma pesquisa mundial, feita ao longo de 20 anos e encerrada em 2012, revelou que o país é o mais afetado pelo excesso de álcool. A depressão aparece como o segundo problema mais frequente, seguido dos demais transtornos de humor e de ansiedade. "Os vícios também são considerados transtornos mentais e são os mais devastadores que existem", reforça. Entre dependentes químicos, as doenças psíquicas costumam se manifestar após um evento específico.
Câmara explica ainda que infecções severas, traumatismos, medicações fortes ou intoxicação por substâncias como metais pesados também estão entre os fatores ambientais que desencadeiam os males da mente. "O ambiente pode facilitar ou retardar a expressão dessas doenças", completa. O estresse emocional também é um fator determinante. Pessoas que vivem em condições de extrema pobreza, em uma realidade repressora ou em um ambiente familiar pouco amigável são as mais propícias a ver a doença sair do casulo mental. Esse é o motivo, de acordo com o médico, dos presídios estarem abarrotados de doentes mentais.
Leia na edição impressa uma entrevista com Ana Beatriz Barbosa Silva, médica-psiquiatra e autora de Mentes inquietas (2003), Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado (2008) e outros livros sobre transtornos de personalidade. Seu último livro, Corações descontrolados: ciúmes, raiva, impulsividade — o jeito borderline de ser, foi lançado em 2012.
Fonte: Jornal Correio Brasiliense
Disponível em:<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2013/03/03/interna_revista_correio,352266/labirintos-da-mente.shtml>. Acesso em: 05 mar. 2013.
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