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sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Reforma Psiquiátrica Brasileira e a Luta Antimanicomial


Tratar da reforma psiquiátrica brasileira requer abordar a história da psiquiatria no Brasil, bem como a sua concepção acerca da loucura

"A história da nossa psiquiatria é a história de um processo de asilamento; é a história de um processo de medicalização social". (Amarante, 1994:74)

A psiquiatria surge, com a chegada da Família Real ao Brasil, com o objetivo de colocar ordem na urbanização, disciplinando a sociedade e sendo, dessa forma, compatível ao desenvolvimento mercantil e as novas políticas do século XIX.
É a partir do embasamento nos conceitos da psiquiatria européia, como degenerescência moral, organicidade e hereditariedade do fenômeno mental, que a psiquiatria brasileira intervém no comportamento considerado como desviante e inadequado às necessidades do acúmulo de capital, isolando-o e tratando-o no hospital psiquiátrico.
“O saber e o poder médicos, artificialmente, criam uma legitimidade de intervenção da classe dominante sobre os despossuídos através da nova especialidade - a psiquiatria - da nova instituição (...) o Hospital Psiquiátrico. O objeto dessa intervenção (...) o sofrimento mental - é reduzido, através de um artifício conceitual, a categoria de "doença mental", subtraindo-se toda a complexidade de fenômenos diversos, singulares e compreensíveis no contexto da existência humana” (Feffermann et al, 200: 4)
O Manicômio, dentre outros dispositivos disciplinares igualmente complexos, atravessou séculos até os nossos dias, conformando uma sociedade disciplinar com dispositivos disciplinares complementares num processo de legitimação da exclusão e de supremacia da razão. 

Os primeiros movimentos questionadores

Frente a essa realidade surgem alguns movimentos(1) que questionam essa ordem das coisas, procurando romper com a tradição manicomial brasileira, principalmente com o fim da Segunda Guerra Mundial. Todas essas experiências são locais, referidas a um ou outro serviço ou grupo e estão à margem das propostas e dos investimentos públicos efetivos. Há forte oposição exercida pelo setor privado que se expande e passa a controlar o aparelho de Estado também no campo da saúde.
Na década de 60, com a unificação dos institutos de pensões e de aposentadoria, é criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). O Estado passa a comprar serviços psiquiátricos do setor privado e concilia pressões sociais com o interesse de lucro por parte dos empresários. Dessa forma, cria-se uma “indústria para o enfrentamento da loucura” (Amarante, 1995:13).
Mesmo diante dessa realidade os movimentos questionadores crescem e têm como principal inspiração a experiência de Trieste, na Itália, liderada por Franco Basaglia.

A experiência de Franco Basaglia em Trieste e a repercussão no Brasil

Basaglia, em 1971, fecha os manicômios, acabando com a violência dos tratamentos e põe fim no aparelho da instituição psiquiátrica tradicional. Basaglia demonstra que é possível a constituição de uma nova forma de organização da atenção que ofereça e produza cuidados, ao mesmo tempo que produza novas formas de sociabilidade e de subjetividade para aqueles que necessitam da assistência psiquiátrica.
Em 13 de maio de 1978 foi instituída a Lei 180, de autoria de Basaglia, e incorporada à lei italiana da Reforma Sanitária, que não só proíbe a recuperação dos velhos manicômios e a construção de novos, como também reorganiza os recursos para a rede de cuidados psiquiátricos, restitui a cidadania e os direitos sociais aos doentes e garante o direito ao tratamento psiquiátrico qualificado.
Esse grande passo dado pela Itália influenciou o Brasil, fazendo ressurgir diversas discussões que tratavam da desinstitucionalização do portador de sofrimento mental, da humanização do tratamento a essas pessoas, com o objetivo de promover a reinserção social.
Na década de 70 são registradas várias denúncias quanto à política brasileira de saúde mental em relação à política privatizante da assistência psiquiátrica por parte da previdência social, quanto às condições (públicas e privadas) de atendimento psiquiátrico à população.
No Rio de Janeiro, em 1978, eclode o movimento dos trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), que faz denúncias sobre as condições de quatro hospitais psiquiátricos da DINSAM e coloca em xeque a política psiquiátrica exercida no país.

O Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental

É nesse contexto, no fim da década de 70, que surge a questão da reforma psiquiátrica no Brasil. Pequenos núcleos estaduais, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais constituem o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). A questão psiquiátrica é colocada em pauta:
“... tais movimentos fazem ver à sociedade como os loucos representam a radicalidade da opressão e da violência imposta pelo estado autoritário”. (Rotelli et al, 1992: 48)
A violência das instituições psiquiátricas, dessa forma, é entendida como parte de uma violência maior, cometida contra trabalhadores, presos políticos e, portanto, contra todos os cidadãos.

A relação entre a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica

O movimento de reforma sanitária tem influência constitutiva no movimento de reforma psiquiátrica. Nos primeiros anos da década de 80 os dois movimentos se unem, ocupando os espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de introduzir mudanças no sistema de saúde.
“A Proposta da Reforma Sanitária Brasileira representa, por um lado, a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro lado, a possibilidade da existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema”. (Arouca, 1988:2)
Em 1986, a 8 ª Conferência Nacional de Saúde, foi um marco para a realização desse processo, na qual o movimento “... assumiu definitivamente a bandeira da descentralização, pleiteando a criação de um sistema único de saúde universal, igualitário, participativo, descentralizado e integral”. (Conferência Nacional de Saúde, 1987 apud Paim, 1998:9).
A partir daí foram tomadas várias iniciativas para o alcance desse objetivo como a Constituição Federal Brasileira, promulgada, em 5 de outubro de 1988. Esta possui uma seção exclusiva para a questão da saúde (Art.196 a Art. 200) na qual consolida-se a universalização da assistência, a integralidade da atenção à saúde - realizada por ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação -, o reconhecimento do direito e necessidade da participação da comunidade na gestão do sistema - através do Conselho de Saúde -, a hierarquização, a eqüidade e a descentralização do sistema - com comando único em esfera de governo.
Um modelo de atenção coerente com as diretrizes da Constituição pressupõe o fortalecimento do poder público, capacitando-o a implementar políticas de impacto articuladas e integradas nas diversas áreas, buscando melhoria na qualidade de vida. A saúde, dessa forma, passa a ser entendida de forma ampla, determinada socialmente e, portanto, como sendo fruto de políticas de governo que promovam condições adequadas de vida ao conjunto da população.
Este modelo não é viável através de uma política de Estado mínimo, mas da descentralização e da configuração de um verdadeiro poder local de caráter público e, portanto, permeável ao controle por parte da população.
Todos esses avanços foram originados pelo movimento de Reforma Sanitária. Ao mesmo tempo que o movimento de reforma psiquiátrica se articula ao de Reforma Sanitária, ele continua com suas atividades questionadoras e transformadoras.
 
O Movimento de Luta Antimanicomial

Na década de 80, ocorrem vários encontros(2), de preparação para a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM), que ocorreu em 1987 e recomenda a priorização de investimentos nos serviços extra-hospitalares e multiprofissionais como oposição à tendência hospitalocêntrica.
No final de 1987 realiza-se o II Congresso Nacional do MSTM em Bauru, no qual se concretiza o Movimento de Luta Antimanicomial e é construído o lema ‘por uma sociedade sem manicômios’. Nesse congresso amplia-se o sentido político-conceitual acerca do antimanicomial.
“Enfim, a nova etapa (...) consolidada no Congresso de Bauru, repercutiu em muitos âmbitos: no modelo assistencial, na ação cultural e na ação jurídico-política. No âmbito do modelo assistencial, esta trajetória é marcada pelo surgimento de novas modalidades de atenção, que passaram a representar uma alternativa real ao modelo psiquiátrico tradicional...”(Amarante, 1995:82).
Nesta trajetória é construído o Projeto de Lei 3.657/89 , conhecido como Lei Paulo Delgado, que contém três pontos: detém a oferta de leitos manicomiais financiados com dinheiro público, redireciona os investimentos para outros dispositvos assistenciais não-manicomiais e torna obrigatória a comunicação oficial de internações feitas contra a vontade do paciente oferecendo: “(...) pela primeira vez um instrumento legal de defesa dos direitos civis dos pacientes”.(Bezerra, 1992: 36)
Em 1990, a conferência ‘Reestruturación de la Atención Psiquiátrica en la Región’, promovida pelas Organizações Panamericana e Mundial de Saúde (OPS/OMS), Caracas, proclama a necessidade premente de reestruturação imediata da assistência psiquiátrica pela adequação das legislações dos países de forma que “(...) assegurem o respeito dos direitos humanos e civis dos pacientes mentais e promovam a reorganização dos serviços que garantam o seu cumprimento”. (CRP, 1997: 26) Essa conferência tem como ponto principal demarcar a crescente tendência internacional de superação dos velhos modelos de psiquiatria e reforma psiquiátrica.
O Brasil é signatário dessa Conferência, comprometendo-se com seus objetivos.
Além da Conferência de Caracas, há um outro documento político adotado pela Organização das Nações Unidas: “Princípios para a proteção de pessoas com problemas mentais e para a melhoria das Assistência à Saúde Mental”, que visa assegurar os direitos da pessoa portadora de sofrimento mental, tratando-a, dessa forma, como cidadã.
 
 
Fonte: Site SER MELHOR

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