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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Fábrica de Heróis: qualquer um pode aprender a ser corajoso e realizar bravuras. Convencido disso, o psicólogo Philip Zimbardo desenvolveu um projeto para promover destemor e altruísmo nas escolas

“Há um antigo provérbio que diz: 'A ocasião faz o ladrão'. No entanto, a oportunidade fez de mim outra coisa.” Assim Giorgio Perlasca explicou ao jornalista italiano Enrico Deaglio o que o levara a arriscar a vida para salvar 5 mil judeus húngaros dos nazistas em 1944. “Não acho que fui um herói. Afinal de contas, tive uma chance e a aproveitei.”
Como tantos outros protagonistas de atos heroicos que surpreenderam até a si mesmos com realizações em situações excepcionais, Perlasca não atribui seu gesto ao temperamento forte, à generosidade acentuada ou a uma profunda convicção ideológica. Vê sua attitude como a reação quase inevitável ao que vivia em dado momento: “O que você faria se estivesse em meu lugar?”
A pergunta é fundamental. Deaglio, autor do livro A banalidade do bem, sobre Perlasca, observa como os atos heróicos, na maioria das vezes, partem de pessoas comuns. Então por que a maioria de nós não os realiza? O título escolhido pelo jornalista remete claramente à obra A banalidade do mal, de Hannah Arendt, sobre o nazista Adolf Eichmann. No processo ocorrido em Israel há meio século, o organizador da máquina do Holocausto que havia condenado à morte milhões de judeus não parecia o fanático ou o sádico que se esperava, mas um pacato contador convencido de ter apenas cumprido seu dever.
Hannah Arendt concluía que qualquer um de nós, sob a pressão de circunstâncias anômalas, poderia cometer atrocidades semelhantes – uma intuição confirmada por 50 anos de pesquisas sobre a “psicologia do mal”. Há 40 anos, o psicólogo Stanley Milgram, professor e pesquisador da Universidade Yale, conduziu uma experiência polêmica, que demonstrou como pessoas comuns estariam dispostas a infligir choques com intensidade crescente – até chegar a voltagens indicadas como “perigosas” – em um suposto voluntário que gemia e agonizava. Na realidade tratava- se de um ator, mas o participante do estudo que o “torturava” não sabia disso, seu objetivo era obedecer ao pesquisador.
Em 1971, Philip Zimbardo, seu colega da Universidade Stanford, descobriu que, em uma prisão simulada, estudantes aos quais foram distribuídos aleatoriamente papéis de guardas ou de detentos, identificaram-se a tal ponto com seu personagem que cometiam atos de violência. A situação ficou tão grave que o pesquisador foi obrigado a suspender o experimento menos de uma semana depois de iniciado. Por meio século, estudos como esses investigaram como certos contextos podem determinar o comportamento de uma pessoa mais do que seus atributos individuais, até chegar, em casos extremos, a transformar seres humanos “normais” em “monstros”. Assim, foi desfeita a visão de que a pessoa que comete um ato isolado de crueldade é intrinsecamente má.
Os psicopatas existem, é óbvio, mas não são a regra e, sobretudo, não explicam fenômenos sociais graves como o Holocausto. Foram analisadas as forças que alimentam essas dinâmicas, como obediência acrítica à autoridade; conformismo e necessidade de integração; difusão da responsabilidade no grupo ou sua transferência para quem dá a ordem; preconceito e desumanização do outro. Também foram avaliados individualmente fatores que tornam essas forças mais ou menos poderosas, como tipo de autoridade, tamanho do grupo e presença de pelo menos um dissidente.
Enfim, a banalidade do mal foi estudada a fundo. O que até agora ainda não ficou claro é o outro lado dessa história: aquela minoria mais frequentemente escassa, mas nunca ausente, que não se deixa transformar em monstro. No experimento no qual Milgram obteve a obediência da maioria – quando pedia a colaboradores que infligissem choques em outras pessoas – 37 dos 40 participantes fizeram o que lhes era pedido. Mas 3 se recusaram. O próprio Zimbardo estava identificado com seu papel de diretor de prisão a ponto de não ver mais os horrores, sendo obrigado a interromper o experimento graças a uma pesquisadora que teve a coragem de enfrentá-lo e trazê-lo de volta à realidade.
Na vida real, na prisão iraquiana de Abu Ghraib, havia guardas que torturavam os detentos, mas também o sargento Joseph Darby, que, depois de muita hesitação, denunciou o ocorrido. Porém, ninguém nunca investigou sistematicamente como eles encontraram determinação para se rebelar. Também é preciso considerar que, contrariamente à ideia que se faz de um “monstro”, prevalece em relação ao herói a imagem de uma pessoa que, por coragem, força, bondade, honestidade, carisma e abnegação, se destaca dos mortais comuns.
“É uma visão aristocrática do heroísmo, que contrasta com a realidade”, observa Zimbardo. A ação heroica, porém, pode ser realizada por qualquer um que depare com uma situação extraordinária. Mas se todos têm dentro de si essa potencialidade, por que tão poucos a colocam em prática? Sobre esse dilema, há vários indícios, principalmente como subproduto dos estudos sobre o mal. Após 50 anos, chegou a hora de ultrapassar o limite definido: é preciso analisar a psicologia do bem e tirar proveito dela. Por isso, Zimbardo lançou, em São Francisco, o Heroic Imagination Project, uma organização sem fins lucrativos para promover o “heroísmo cotidiano”.
A pesquisa é o motor dessa proposta, que deve se basear na ciência. O primeiro desafio é esclarecer quem é um herói. “Historicamente, o herói é um homem guerreiro, como Aquiles ou Ulisses, jamais mulheres, jamais rapazes; são essencialmente homens adultos sedutores”, disse Zimbardo na apresentação do projeto. Segundo ele, os heróis modernos são “enganadores”, já que parecem inalcançáveis. “Madre Teresa, Nelson Mandela, Mahatma Gandhi são pessoas que decidiram dedicar a vida a uma causa, e isso é demais para que a maior parte de nós possa sequer pensar em imitá-los.”
Para Zimbardo, a ideia épica do herói com o qual gente comum não consegue se identificar está entre as causas da passividade da maioria. Ele aposta na necessidade de “democratizar” o heroísmo e reconduzi-lo ao dia a dia. Para isso, entre outras coisas, está em andamento a elaboração de uma “heropédia”, uma enciclopédia de heróis “comuns”, na qual todos possam encontrar modelos reais para se inspirar, já que é dado como certo que a disponibilidade de modelos influencia o comportamento.
Estabelecido o que não é um herói comum, falta definir o que é. “A ação heroica se distingue por alguns traços: é voluntária; traduz-se em ajuda aos que se encontram em dificuldades; muitas vezes implica risco físico, econômico ou social; e não prevê uma compensação”, explica o diretor do projeto, Clint Wilkins. A definição cobre um campo de ação muito diverso, no qual se renuncia aos confortáveis automatismos da inércia e da inação para encarar pequenos e grandes desafios.
Existem atos de impulso em uma emergência e ações premeditadas ou levadas adiante com tenacidade durante os anos. Assim, tanto é considerado herói quem enfrenta a tempestade para salvar uma criança quanto quem esconde, por meses, judeus na própria casa; quem arrisca a carreira profissional desmascarando as falcatruas da empresa ou a pessoa que sacrifica sua comodidade para dedicar a vida aos pobres. Ou ainda quem para na rua e socorre um estranho. Com o psicólogo Zeno Franco, Zimbardo procurou elaborar uma “classificação do heroísmo”, apresentada em 2007 no livro The Lucifer effect: understanding how good people turn evil (O efeito Lúcifer: entendendo como pessoas boas se tornam diabólicas).
Trata-se de um trabalho em curso, por ora limitado à cultura ocidental. Entretanto, é um esboço pelo qual será possível se orientar. O que deflagra comportamentos altruístas? E o que se pode fazer para promovê-los? Existem fatores individuais que favorecem as ações heroicas? “Hoje ainda não existem dados que confirmem isso”, afirma o psicólogo social Piero Bocchiaro, que participa do projeto com seus estudos sobre o tema nas universidades de Palermo e Livre de Amsterdã e trata do heroísmo em seu livro Psicologia do mal. Ele lembra que, nos anos 80, os psicólogos Samuel e Pearl Oliner examinaram 700 pessoas de vários países.
Durante a guerra, metade deles havia escondido em casa um ou mais judeus. A linha divisória entre as duas categories era muito frágil. Quem havia prestado Socorro demonstrava mais coragem moral, senso de responsabilidade, empatia e tolerância em relação a grupos sociais diferentes, além de capacidade de se opor a ordens injustas. No entanto, não havia
nenhuma diferença em seus traços de personalidade nem nos valores morais básicos. Os Oliner foram criticados pelos métodos que empregaram – como as entrevistas depois de tantos anos da ocorrêcia dos fatos, o que teria contribuído para a reconstrução de um quadro errôneo. Suas conclusões, porém, coincidem com as do próprio Bocchiaro, que realizou experiências planejadas e controladas.
“O procedimento é o mesmo usado por Milgram: colocamos as pessoas diante de ordens injustas, e para nós interessa quem desobedece a elas”, explica. Funciona da seguinte maneira: um pesquisador respeitável pede a seus alunos que escrevam uma mensagem animada aos amigos para convencê-los a participar de uma experiência. Porém, os estudantes são informados de que, nos estudos-piloto, os participantestiveram reações de pânico, deterioração das habilidades intelectuais e outras consequências desagradáveis e perigosas.
Na Holanda, em 2010, a maioria dos universitários – em teoria, pelo menos, treinados para pensar de forma crítica – obedeceu. Na Itália, também. Em Amsterdã, 76% escreveram a mensagem, 14% se recusaram e apenas 9% contaram com uma terceirapossibilidade: fazer uma denúncia anônima à comissão ética da universidade. Os perfis de personalidade não mostravam diferenças entre os que seguiram os diferentes caminhos.
Nem o passado de uma pessoa nem a imagem que ela mesma ou os outros podem fazer de seu comportamento habitual ajudam a prever o que alguém faria em situações insólitas. “A outro grupo pedimos apenas que imaginassem o que teriam feito: nesse caso, apenas 3% imaginavam obedecer, 32% previam desobedecer e 74%, denunciar”, disse Bocchiaro.
Enfim, o motivo que nos faz acatar uma determinação, ainda que pareça injusta, e permanecer passivos ou nos rebelar parece não consistir em traços profundos da personalidade. “As diferenças podem depender de atributos mais flexíveis e, portanto, mais sensíveis ao contexto – no qual deveria ser mais fácil trabalhar”, observa. Ele conta que o Heroic Imagination Project pretende promover estudos sobre variáveis para identificar quais têm maior peso na indução à desobediência, modificando, por exemplo, a maneira como os indivíduos se relacionam com a autoridade etc.
Nos Estados Unidos, Zimbardo observou que dos 4 mil cidadãos escolhidos ao acaso, 20% haviam realizado um ato heroico. Entre negros e hispânicos, o percentual era o dobro em comparação com os brancos: a hipótese romântica é que as vítimas de preconceito e discriminação desenvolvem sensibilidade maior que os outros; a prosaica é que eles têm mais ocasiões para deparar com injustiças e perigos. Zimbardo quer voltar sua atenção agora para distinguir o que há de verdadeiro nas duas teses.

As pesquisas não têm mero interesse acadêmico. Os resultados serão aplicados ao maior dos desafios: mudar comportamentos. “Queremos promover a ideia de que todos somos heróis em potencial”, ressalta Bocchiaro. “Por esse motivo, fazemos breves treinamentos para despertar essa convicção nos jovens. O conhecimento e a informação formam o primeiro passo, mas não bastam. Para deflagrar uma ação positiva é preciso descer ao nível profundo das emoções, das experiências, somente assim sera possível acessar o herói dentro de nós quando a situação exigir.”
Em duas escolas da região de São Francisco, uma em um bairro desfavorecido e outra em uma área abastada, foi iniciado em outubro do ano passado um programa para promover a “imaginação heroica”, a imagem de si como possível herói. O programa é dividido em três fases. Após uma promessa solene – um compromisso público tem mais chance de ser respeitado –, começa a fase teórica. Os alunos tomam consciência dos mecanismos que nos levam a comportamentos perversos. Aprendem o poder que determinadas situações têm de condicionar comportamento e a ser mais empáticos por meio de exercícios de atenção aos sentimentos alheios e aos próprios. A proposta também é contestar uma causa importante da inação ou da crueldade: a ideia de que a vítima seja de algum modo culpada por seu destino. Depois, os jovens estudam exemplos de heroísmo em que possam se inspirar.
Chega então o momento do planejamento. Os jovens distinguem um problema que poderia requerer um comportamento heroico: por exemplo, enfrentar casos de prepotência, preconceito ou de discriminação dentro da própria escola. Em seguida, analisam o desafio e elaboram um plano para confrontá-lo, envolvendo também os outros estudantes. Na última fase, o plano é colocado em prática, sempre com a ajuda do professor treinado para acompanhar essa atividade.
“Começamos com pequenos passos, indo da teoria à ação, nos quais os adolescentes se aventuram fora do conforto de seus hábitos e experimentam a própria imaginação heroica, primeiro em situações protegidas e depois na vida real”, conta Wilkins. “Desse modo, os estudantes passam a se sentir capazes de fazer escolhas que exigem mais empenho. O conceito básico que transmitimos é que pequenas atitudes fazem enorme diferença: nas experiências sobre conformismo, um único dissidente fez cair a taxa de conformismo no grupo.” Assim as lições se traduzem pouco a pouco em comportamentos positivos, os quais – espera-se –, com o contágio do exemplo, produzirão mudanças na comunidade e passarão a ocorrer espontaneamente também em outras circunstâncias da vida.
“Não podemos ainda avaliar o projeto, temos somente dados preliminares. Porém, os sinais são encorajantes”, comemora Lynne Henderson, diretora da pesquisa. “Os estudantes declararam que estão aprendendo a enfrentar os companheiros mais voluntariosos e a 'apertar o botão de pausa' antes de agir, assim não se entregam impulsivamente a escolhas mais imediatas.
Percebem que estão conseguindo colaborar uns com os outros, tomar a palavra e participar de discussões em que antes não teriam intervindo, ou tomar posições em defesa dos menos favorecidos. Enfim, estão construindo aquilo que chamamos de músculos sociais.” Segundo Lynne, já é possível notar que os estudantes parecem mais propensos a conceder aos outros o benefício da dúvida antes de julgá-los. “Naturalmente, faremos avaliações mais aprofundadas, com testes para os estudantes e também para seus familiares”, salienta.
No momento, o que se tem é um laboratório de estudo e experimento. O programa extrai seus conhecimentos da psicologia social, mas pretende incorporar os resultados das novas pesquisas logo que estejam disponíveis. Prevê experiências e avaliações, também por meio de uma rede social, reunindo os alunos participantes para verificar as repercussões ao longo do tempo. Por enquanto, o projeto limita-se a algumas escolas piloto, mas Zimbardo tem planos ambiciosos: quer um ramo em cada cidade dos Estados Unidos – e, depois, no exterior. Para isso está à caça de colaborações e já obteve o compromisso de fontes que vão do Instituto Científico Chinês ao fundador da Wikipédia, Jimmy Wales.
“Se tivermos sucesso, o resultado será fascinante: um grupo de heróis prontos para iniciar uma extraordinária mudança social e transformar sua comunidade,sua cidade e o mundo em um lugar mais humano para todos.”

 Fonte: Revista Mente e Cérebro

Disponível em:<http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/fabrica_de_herois.html>. Acesso em: 15 fev. 2012.

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