Apesar de poder ser patológico, o narcisismo está relacionado a saudáveis características de liderança e iniciativa
Não é de hoje que o narcisismo tem má reputação. A depreciação dessa característica remonta pelo menos à antiga mitologia grega. Uma das narrativas desse velho mundo conta que o belo caçador Narciso (que, sem dúvida, ficaria bem satisfeito com sua atual fama) observou seu próprio reflexo na água e se apaixonou profundamente. O rapaz ficou tão impressionado com a imagem de si mesmo que morreu olhando para ela. Para a psicanálise, trata-se de um aspecto fundamental para a constituição do sujeito. Um tanto de amor por si é necessário para confirmar e sustentar a autoestima, mas o exagero é sinal de fixação numa identificação vivida na infância. A ilusão de que o mundo gira ao nosso redor é decisiva durante a infância, mas para o desenvolvimento saudável é necessário que se dissipe, conforme enfrentamos frustrações e descobrimos que não ser o centro do universo tem suas vantagens. Afinal, ser “tudo” para alguém (como acreditamos, ainda bem pequenos, ser para nossa mãe) é um fardo pesado demais para qualquer um. Alguns, no entanto, se iludem com o fascínio do papel e passam sua vida almejando o modelo inatingível de perfeição.
É compreensível que, de forma exacerbada, a característica seja associada à patologia – embora na última versão do Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mentais, o DSM-5, lançada recentemente, o narcisismo tenha deixado a categoria de “distúrbio”. Alguns críticos dessa versão do manual sugerem que, apesar dos evidentes prejuízos que uma atitude marcada pelo narcisismo possa trazer, não interessa à poderosa indústria farmacêutica ressaltar essa questão, já que não há indicação de “remédio” para seu tratamento e, ao mesmo tempo, nossa sociedade incentiva todas as formas de autogratificação, ainda que isso não traga verdadeiro bem-estar.
Na edição anterior do DSM, o transtorno de personalidade narcisista era definido como sentimento excessivo de autoimportância, fantasias irreais de sucesso e intensa inveja, muitas vezes disfarçada, das realizações alheias. Pessoas com o distúrbio também tendem a acreditar que merecem tratamento especial ou que foram injustiçadas quando não obtêm tudo aquilo que desejam. Há casos em que enfrentar o trânsito congestionado ou uma fila atrás de alguém que consideram menos importante, por exemplo, pode causar enorme mau humor, como se fosse uma agressão ser exposto a esse tipo de desconforto.
De fato, a compreensão contemporânea do narcisismo, mesmo entre leigos, raramente é amena. Faça um teste: digite em sites de busca as palavras “narcisistas são”. Certamente aparecerão termos pejorativos, como “egoístas”, “imaturos”, “superficiais” e “egoístas” para completar a frase. Apesar de essas características provavelmente serem indesejáveis, recentemente o psicólogo Jean M. Twenge e seus colegas da Universidade de San Diego apontaram que o “grau” de narcisismo de universitários americanos subiu vertiginosamente nas últimas décadas. Faz sentido se pensarmos que nossa cultura incentiva o individualismo e o culto ao “eu” e ao “meu”.
É certo que pelo menos em parte a má fama do narcisismo seja merecida. No entanto, alguns pesquisadores apontam nuances dessa característica. Embora em excesso esse aspecto torne o convívio difícil, quando bem dosados, o amor-próprio e a autoestima são fundamentais para a busca de experiências saudáveis e a validação delas, o cuidado consigo mesmo e até para o exercício de atividades que exijam iniciativa, liderança e criatividade.
TODO MUNDO É UM POUCO
Alguns psicólogos conceituam o narcisismo como um egocentrismo exagerado. É evidente que todos podemos ser mais ou menos autofocados em algumas situações, mas para a pessoa extremamente voltada para si própria torna-se difícil colocar-se no lugar do outro de forma empática. Com isso, as trocas afetivas ficam cada vez mais escassas, concorrendo para o empobrecimento do mundo subjetivo.
Na tentativa de medir o “grau” de narcisismo, pesquisadores utilizam em laboratório o Inventário de Personalidade Narcisista. Ao responder a esse questionário, os participantes devem escolher uma entre duas declarações, como “Prefiro me misturar com a multidão” ou “Gosto de ser o centro das atenções”. Ou optar entre: “Não sou melhor ou pior que a maioria das pessoas” e “Acho que sou uma pessoa especial”. A pontuação revela a intensidade dos traços narcísicos na personalidade.
Alguns itens refletem a constatação grega: narcisistas são obcecados com a própria aparência. O psicólogo Simine Vazire, coordenador de um grupo de pesquisa na Universidade de Washington, firma que essas pessoas tendem a usar roupas caras, ainda que básicas, e gastar bastante tempo pensando em si mesmas, além de sentir intenso prazer ao falar de si mesmas, focando nos mais variados aspectos da própria vida. E isso se mostra até na escolha das palavras: em 1988, os psicólogos Robert Raskin, da Universidade da Califórnia, Berkeley, e Robert Shaw, da Universidade Yale, descobriram por meio de monólogos gravados que estudantes considerados narcisistas utilizaram significativamente mais vezes a palavra “eu” e menos o termo “nós”, em comparação com outros voluntários.
Cada vez mais, as evidências sugerem, no entanto, que – reconhecido ou não pela “bíblia” da psiquiatria – o transtorno de personalidade narcisista resulta de uma mistura de elementos. O que salta aos olhos costuma ser a autossuficiência e a certeza do próprio valor, mas o que sustenta essa atitude é, na verdade, uma enorme fragilidade emocional, resultante da dolorosa marca psíquica de não ter sido suficientemente amado e valorizado na infância. É possível pensar que esse investimento exacerbado em si mesmo e no próprio universo, e mesmo o egoísmo, tenha a função de compensar a baixa autoestima.
A forma como a personalidade narcísica se apresenta também varia. Líderes terríveis como Benito Mussolini, Adolf Hitler e Saddam Hussein, venerados por seus seguidores, poderiam ser considerados narcisistas “pretensiosos”, extravagantes e prepotentes. Outro tipo de narcisista, menos óbvio, mas não menos devotado à própria imagem, é definido por cientistas como “vulnerável”. Em geral, são pessoas frágeis e reservadas, mas muito voltadas apenas aos próprios interesses, como alguns dos (apenas aparentemente) modestos personagens retratados por Woody Allen em seus filmes.
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Fonte: Revista Mente e Cérebro
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