Uma em até cinco pessoas pelo mundo, em um período da vida, provavelmente
apresentará o que a medicina denomina depressão. Determinadas
modificações químicas no cérebro com vinculação dos neurotransmissores
(noradrenalina e serotonina, em maior proporção estas) estarão associadas a
autoestima arruinada, tristeza continuada, alterações cognitivas graves.
Cansaço, medo, desinteresse, vazio, sensação de dor, de morte, insônia.
Suponha que eu diga que um ventilador apresenta barulho, as pás se movimentam
em baixa rotação, às vezes param. E em seguida, eu lhe digo que abriremos o
pequeno motor elétrico do ventilador e que pesquisaremos o que faz com que ele
apresente autoestima arruinada, tristeza continuada, cansaço. Você me diria que
uma pessoa não é um ventilador? Sim, eu acredito que a maioria não é um
ventilador; não sei dizer de todas, não as conheço. A Filosofia Clínica estuda
alguns elementos dos bastidores mecânicos do fenômeno médico (não filosófico
clínico) nomeado por depressão. Exemplo: historicamente, a depressão é tida como
apatia, renúncia, recuo, destituição dos elementos vitais. Uma falácia
compreensível, mas cada vez menos justificável, se você tomar a Filosofia
Clínica como estudo. Acredito na depressão como um movimento também de luta, de
afirmação, de vida. N., senhora a quem atendi há muitos anos, escreveu na época:
"...a única vez em que tenho a lembrança de estar realmente viva, Lúcio, foi
quando estive em depressão. Aquele luto, tudo sem cor, dor no corpo, vontade de
morrer é que me fez viver. Aprendi o que é viver na minha depressão. Sem a
depressão a minha vida não teria graça nenhuma".
Mas é notório que alguns não desenvolvam a depressão, ainda que diante de
quadros existenciais predisponentes historicamente a ela. Já algumas pessoas,
pela constituição interna que formaram estruturalmente, caminham facilmente,
pelo pequeno estímulo ou nenhum, em direção a ela. Encontram subterfúgios para
um caminho rumo ao que se chama depressão. Há muitos exemplos. Um deles
encontramos nas palavras de Nietzsche em Para além do bem e do mal quando
escreve: "Os homens que conheceram a profundidade da tristeza, se traem quando
são felizes, têm um certo modo de compreender a felicidade que parece mostrar
que querem comprimi-la e sufocá-la, por ciúmes - porque sabem que, infelizmente,
essa logo fugirá".
Também a sociedade pode empurrar grupos de pessoas a uma condição similar ao
que a medicina chama de depressão por motivos que vão da lição à advertência.
Mas qual a razão de, eventualmente, a sociedade promover a depressão e,
concomitantemente, oferecer auxílio para a depressão que - neste caso -
fomentou? Uma das respostas está na natureza da ajuda que a sociedade oferece
(observe em quais condições os remédios e as terapias servem como paliativos,
quando estão a serviço do próprio "mal" a que se propõem debelar). Existem
fatores sociais, intrincados, derivativos, difíceis de mapear que podem levar ao
que se denomina depressão. Diversos pesquisadores buscaram estes vetores; alguns
autores os imaginaram, inventaram, enquanto outros os descobriram. Nem sempre
esta diferença é relevante. Tomemos como exemplo o que Joaquim Nabuco escreveu
em O abolicionismo, obra de 1884 (por favor, procure dar contexto ao
escrito que segue): "Quanto às suas funções sociais, uma aristocracia
territorial pode servir ao país de diversos modos: melhorando e desenvolvendo o
bem-estar da população que a cerca e o aspecto do país em que estão encravados
os seus estabelecimentos; tomando a direção do progresso nacional; cultivando,
ou protegendo, as letras e as artes; servindo no exército e na armada, ou
distinguindo-se nas diversas carreiras; encarnando o que há de bom no caráter
nacional, ou as qualidades superiores do país, o que mereça ser conservado como
tradição. Já vimos o que a nossa lavoura conseguiu em cada um desses sentidos,
quando notamos o que a escravidão administrada por ela há feito do território e
do povo, dos senhores e dos escravos.
Desde que a classe única, em proveito da qual ela foi criada e existe, não é
a aristocracia do dinheiro, nem a do nascimento, que papel permanente desempenha
no Estado uma aristocracia heterogênea e que nem mesmo mantém a sua identidade
por duas gerações? Se, das diversas classes, passamos às forças sociais, vemos
que a escravidão, ou as apropriou aos seus interesses, quando transigentes, ou
fez em torno delas o vácuo, quando inimigas, ou lhes impediu a formação, quando
incompatíveis".
Intensidade na experiência dos fenômenos relacionados à depressão é um dos
fatores mais mencionados por pessoas que a viveram, como a tristeza muito forte.
Existe aqui uma peculiaridade: a intensidade, de modo amplo, mas sem ser regra,
liga-se imediatamente a dois eventos usualmente próximos. O primeiro, a
paralisação de atividades que estavam em andamento; o segundo, ao contraste com
os fenômenos internos. Mas já encontrei situações em clínica nas quais as
pessoas atribuíam a intensidade por diferenciação e não por critérios de mais ou
de menos.
A Analítica de Linguagem, um dos ricos veios da Filosofia Clínica, auxilia a
decodificação dos laços internos, a mecânica da depressão, quando os dados de
Semiose são verossímeis. Ou seja, observe a vizinhança, os referenciais, o
movimento para uma acepção. E os casos nos quais tudo vai bem existencialmente,
não há quaisquer registros que possam aventar a possibilidade de um quadro
depressivo, nem histórico em torno da pessoa, e subitamente um forte episódio de
depressão desce sobre a vida da pessoa arruinando suas buscas, seu trabalho, sua
família? Eis um dos motivos pelos quais em Filosofia Clínica tanto se confere
ênfase a interseções tópicas, aos movimentos estruturais.
A depressão também pode ser indicada existencialmente. Certa ocasião, em uma
aula, sugeri a uma aluna farmacêutica que oferecesse em sua farmácia
depressivos, e não apenas antidepressivos. A questão é que a sociedade na qual
vivemos entende como razoável o antidepressivo e como uma afronta o remédio
depressivo.
Autor: Lúcio Packter
Fonte: Filosofia Ciência e Vida
Disponível em:<http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/80/depressao-para-a-vida-278890-1.asp>. Acesso em: 01 abr. 2013.
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