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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Da revolução à subversão

O eu não é senhor em sua própria casa. Depois de Lacan, o inconsciente antes de ser um fato psíquico é um fato linguístico


É bastante conhecida a metáfora freudiana das três feridas narcísicas da humanidade. Copérnico, Darwin e o próprio Freud teriam desferido os golpes que abalariam o regime de exceção que nutria nosso narcisismo. Copérnico por retirar a Terra do centro do Universo; Darwin por mostrar que a espécie humana está sujeita às mesmas leis que todas as demais; e Freud por demonstrar que mesmo nossa vida psíquica, longe de ser o reino da liberdade, também é regida por leis e por uma dinâmica muito peculiar, que escapa ao controle de nossa consciência intencional. Assim, ao mostrar que o "eu não é senhor em sua própria casa", teria dissipado o último refúgio da onipotência humana. Na eficiente retórica freudiana, essa imagem servia para explicar algumas das razões da resistência a que muitas vezes é anterior ao próprio exame crítico dela, sendo mais de ordem afetiva do que intelectual. Mas a metáfora dos três golpes pode ser vista como uma espécie de "parábola de fundação da Psicanálise", seu mito de Origem - como o Édipo é para um sujeito. Ela confere identidade à jovem ciência de Freud e constitui um lugar privilegiado para discutir a identidade epistemológica a partir de Lacan.
A revolução freudiana, para usar uma feliz expressão de Laplanche, é uma "revolução copernicana inacabada". Todavia, uma revolução inacabada não deixa de ser uma revolução. Um capítulo fundamental que prossegue e aprofunda a freudiana é aquilo que Lacan chamou de subversão do sujeito e a correlativa mudança do campo epistemológico, por ele arrancada do solo da Psicologia e implantada no paradigma da linguagem.
É por isso que a figura do descentramento não apraz a Lacan. Qual a vantagem de substituir um centro por outro? Copérnico estaria demasiado ligado à ideia de centro, e, nesse sentido, "a revolução copernicana não é de modo algum uma revolução". Revolucionário é Kepler. Ao propor a tese das órbitas elípticas, o que é posto em xeque é a própria noção de centro. Uma elipse não possui centro. O mesmo vale para o sujeito.
A principal intuição de Lacan em 1953, quando ele profere o célebre Discurso de Roma, consiste em operar um deslocamento epistemológico na Psicanálise. É preciso que a Psicanálise encontre um idioma no interior do qual os fenômenos sejam articuláveis, as perguntas possam ser formuladas e as respostas esperadas. Um idioma no qual os meios da prática (a fala, o silêncio, a interpretação) possam justificar- se conceitualmente (o campo da linguagem). Em termos técnicos trata-se de um ajuste entre a Ontologia e a Epistemologia psicanalíticas. Afinal, como um tratamento que se dá sem o recurso a medicamentos, apenas através da palavra, poderia ter efeitos na subjetividade? A estratégia lacaniana consiste em mostrar que nossa subjetividade (e portanto nossos desejos e nossos sofrimentos) também é efeito do discurso.
É nesse contexto que ele propõe o famoso "retorno a Freud". É preciso, sim, retornar a Freud. Mas para tentar renovar na Psicanálise "os fundamentos que ela retira da linguagem". Mais ou menos como Galileu dá um passo a mais em direção à consolidação do sistema copernicano, ao propor que a linguagem da Natureza é a língua dos números, determinando os limites da ciência do movimento (aquilo que não pode ser descrito em termos de figuras, números ou relações não pode pertencer ao campo da Física), Lacan, do mesmo modo, dá um passo a mais no sentido de fortalecer a hipótese do inconsciente, mostrando que a Psicanálise, se quer pertencer ao universo da precisão, deve encontrar seus fundamentos no campo da linguagem: o inconsciente antes de ser um fato psíquico é um fato linguístico. Trata-se de uma estratégia de redução: em Galileu, redução do campo da physis ao paradigma da Matemática; em Lacan, redução do campo dos fenômenos psíquicos ao domínio da linguagem, numa perspectiva marcadamente estruturalista.
Com efeito, a linguagem deixa de ser um meio para constituir um campo: o campo epistêmico-conceitual onde se definem a estrutura e os limites tanto da teoria quanto da praxis psicanalítica. Toda a operação lacaniana em 1953 parece consistir em trazer a discussão da teoria psicanalítica do campo da psyché para o campo da linguagem. Trata-se de passar do domínio do aparelho psíquico, da vida mental e da representação para o domínio do aparelho de linguagem, do sujeito e do significante. Nesse sentido, o projeto lacaniano muito se assemelha ao projeto da linguistic-turn. Isto é, trata-se da passagem do paradigma da consciência, que domina a cena da Filosofia Moderna a partir de Descartes, ao paradigma da linguagem. No campo da linguagem, a radicalidade da experiência freudiana ganha em relevo e precisão. Em primeiro lugar, a linguagem não é apenas um meio de comunicação ou uma ferramenta de representação do mundo, ela é o campo onde se define a subjetividade. Então, o sujeito vai se definir na linguagem e não mais a partir dos lugares de onde tradicionalmente é definido. Nem a maior ou menor opacidade de sua consciência, nem a autonomia de sua vontade nem a configuração de sua mente, tampouco a anatomia de seu corpo, a fisiologia dos estados neurais ou a fenomenologia de seu comportamento serão parâmetros para definir o sujeito. Assim, a linguagem incidirá na própria elaboração conceitual da Psicanálise implicando uma mudança decisiva em seu quadro de referências: não mais a Biologia, a Física ou a Economia, mas a Linguística, a Matemática, a Etnologia etc... A lida com aquilo que pode ser estruturado como uma linguagem. "Como uma linguagem" e não "por uma linguagem", vale lembrar.
Autor: Gilson Iannini

Fonte: Revista Filosofia Ciência e Vida

Disponível em: <http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/80/da-revolucao-a-subversao-o-eu-nao-e-senhor-278892-1.asp>. Acesso em: 01 abr. 2013.

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