O psicanalista Christian Dunker estuda a relação do ser humano com os muros, não somente no sentido de separação e delimitação de espaço, mas no que se refere às formas de vida cercadas e os sofrimentos causados, como ressentimento social, esvaziamento de si e artificialidade de relacionamentos
Uma abordagem original a respeito do mal-estar, sofrimento e o sintoma na sociedade brasileira, unindo teoria social e Psicanálise, e concluindo que a privatização do espaço público transforma a própria vida em formas de condomínio, com regulamentos, síndicos, gestores e muros. Estes são os temas centrais do livro mais recente de Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (US P), que recebeu o título Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: a Psicopatologia do Brasil entre Muros (Editora Boitempo).
Ele acredita que os sonhos de se morar em um condomínio fechado produzem monstros. Com suas estratégias de nomeação e controle de todo tipo de mal-estar, o "novo espírito do capitalismo" impede as pessoas de reconhecer a aspiração de liberdade presente em toda a formação de sintoma. Fazendo um paralelo com a vida em forma de condomínio, o psicanalista apresenta um novo sintoma social brasileiro, que sofre do mal que pretende erradicar.
Ligado à tradição lacaniana, Dunker é formado pela Universidade de São Paulo, onde obteve seus títulos de graduação, mestrado e doutorado. Possui, também, pós-doutorado pela Manchester Metropolitan University. Coordena, em conjunto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise. Em 2012, recebeu o prêmio literário Jabuti de melhor livro na categoria Psicologia e Psicanálise, pela publicação ampliada de sua tese de livre docência, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica.
No livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: a Psicopatologia do Brasil entre Muros você fala em privatização do espaço público, a partir de reflexões sobre a Psicanálise da vida em condomínios. Pode aprofundar o tema?
Christian Dunker: O Brasil não teve feitorias, como na colonização portuguesa na costa da África, mas capitanias hereditárias. Nelas se formam os primeiros fortes, cuja estrutura essencialmente é de defesa e ocupação e não de comércio e distribuição. Isso parece ter marcado nossa relação com os muros. Muros de defesa, enclaves de autossegregação. Não apenas de separação e delimitação de espaço. No livro, estudo particularmente o Brasil pós-inflacionário e o desenvolvimento de formas de vida ligadas ao condomínio, pensado como uma estrutura. Ou seja, uma vida cercada por muros, baseada em uma legislação própria, regida pela separação estrita entre moradores e funcionários, que representou nosso grande sonho brasileiro de consumo e nosso grande signo de ascensão social. A ideia é estudar essa formação como um sintoma, no sentido psicanalítico do termo. Não apenas a expansão dos sintomas propriamente ditos, associados com essa forma de vida, mas os tipos específicos de sofrimento (ressentimento social, esvaziamento de si, artificialidade de relações) e o tipo de negação do mal-estar que se pode localizar nessa forma de vida. Portanto, não estou falando apenas deste ou daquele condomínio, mas de uma estrutura que admite três covariâncias fundamentais: a prisão, a favela e o shopping center.
Se todo conflito fica reduzido à oposição entre o que podemos ou não podemos fazer, se em vez da palavra fluente só restam contratos e instituições (que funcionam como muros), nos restarão o medo como afeto político e a violência como fantasia de nosso laço com o outro
Diagnosticar os problemas atuais, segundo você, é definir um pequeno estado de sítio, uma anomalia, uma desordem, que deve ser objeto de ações clínica e biopolítica. O que são essas ações?
Dunker: Temos dois processos cruzados no capitalismo brazilianizado (com "z" de zebra mesmo). Por um lado, há a expansão da racionalidade diagnóstica, de tal forma que para se inscrever como cidadão e ser atendido por políticas públicas você deve ser "diagnosticado", às vezes por autodeclaração, às vezes por critério de inclusão ou de exclusão, vemos que as políticas públicas aprenderam a administrar a anomia, injetando o que se pode chamar de atitude cínico-judicialista. Ou seja, não estamos mais preocupados com saúde, mas com a produção de números de diabéticos atendidos, ou de cirurgias realizadas, ou de hospitais construídos, na forma de lei. Você pode dizer, mas hospitais e cirurgias são meios pelos quais a saúde se exerce e se realiza. Digo que sim, desde sempre foi assim. Mas se você olhar de perto, desde que implantamos o nosso neoliberalismo à brasileira, desde que o "negócio" da gestão de cirurgias é posto na ponta do lápis, quando ele se separa das pessoas que fazem saúde e é posto nas mãos de pessoas que trabalham na distribuição de repasses de verbas públicas, gerenciamento de compra e venda de material cirúrgico ou números atuariais, a saúde se torna gerida como um condomínio. Talvez essa forma seja pior ou melhor do que a anterior, mas o fato é que a partir de então temos que sofrer de outra maneira, temos que sofrer como "usuários" e não mais como "pacientes". E isso você pode reaplicar para a educação, para o terceiro setor, para a assistência social e assim por diante. A segunda linha de força desse estado de sítio generalizado é que Freud chamaria de sintoma secundário ou seja, o sintoma que aparece porque o primeiro não consegue elaborar simbolicamente o conflito e portanto reaparece em uma nova formação de angústia. São as justamente chamadas "muralhas" fóbicas, ou seja, não apenas o medo de cavalos, mas a evitação ou o impedimento de ir à rua, porque lá encontramos cavalos. No Brasil o equivalente disso é a nossa hipernomeação do mal-estar como violência. Claro, se todo conflito fica reduzido à oposição entre o que podemos ou não podemos fazer, se em vez da palavra fluente só restam contratos e instituições (que funcionam como muros), nos restarão o medo como afeto político e a violência como fantasia de nosso laço com o outro.
Muitos dizem que o marxismo está fora de moda. Em sua opinião, quais os limites da relação entre dialética e Psicanálise, uma vez que são duas maneiras de pensar que têm personagens em comum, como Lacan?
Na apresentação da obra, afirma-se que o formato dos condomínios, nos dias de hoje, com regulamentos, síndicos, gestores e muros, representa um novo sintoma social brasileiro, que sofre do mal que pretende erradicar. Defina esses sintomas e qual é o mal a que se refere?
Dunker: De modo sintético, nos mudamos para um condomínio para poder ficar mais próximos da natureza, mas aí enfrentamos congestionamentos brutais na entrada de São Paulo, onde a nossa vida natural transforma-se em uma vida nessa casa móvel que é o carro. Nos mudamos para um condomínio para termos profissionalização dos serviços e consequentemente aumento de sua funcionalidade, e o que se obtém são dificuldades com a substituição impessoal de funcionários, extensão de processos administrativos e as mesmas "facilidades" que uma central de call center ou um Serviço de Atendimento ao Consumidor de uma grande companhia de telefonia ou de televisão a cabo. Nos mudamos para um condomínio para termos segurança e proteção 24 horas por dia e o que encontramos é a irrupção de novas formas de violência e intolerância entre condôminos e o aumento exponencial da preocupação imaginária com violência. Nos mudamos para um condomínio com a expectativa de que neste "neo-mundo" poderemos ser, de novo, senhores em nossa própria morada, e o que acontece é que nos sentimos subalternos de um síndico e seu regulamento sádico.
Dunker aborda o desenvolvimento de formas de vida ligadas ao condomínio, pensado como uma estrutura: "A ideia é estudar essa formação como um sintoma, no sentido psicanalítico do termo"
Qual o papel do capitalismo nesse processo de controle?
Dunker: O capitalismo não se apresenta mais na figura voraz de um grande Leviatã controlador de vidas e almas em uma grande linha de montagem. Ele descobriu que poderia nos fazer nossos próprios controladores, e depois disso nos faz sonhar com uma coisa diferente de mais dinheiro, fama e sucesso. Ele nos convida a coisas bem mais intricadas e difíceis de controlar, como a felicidade e a qualidade de experiências. Pergunte-se afinal o que vem a ser uma vida plenamente realizada, à altura de nossa época. As respostas e os modelos são incrivelmente pobres. E isso nós sabemos. Mesmo que queiramos brincar de não saber, mesmo que queiramos adiar o problema, dizendo, por exemplo, que enquanto não sei o que quero vou trabalhando e ganhando dinheiro, quando conseguir de repente, como que num passe de mágica, daí eu saberei. Como se a posse dos meios me garantisse saber quais sãos os fins envolvidos. Não dá certo. Esta conta não fecha, e o que sobra são vidas que se percebem coarruinadas, cronicamente inviáveis ou meramente fracassadas.
Podemos dizer que essa realidade tem como uma de suas consequências a violência nos espaços públicos?
Dunker: Agora você convocou o nome do antídoto à nossa vida em forma de condomínio: o espaço público. Nossos modelos políticos ainda são prisioneiros de uma imagem de espaço público como a polis grega ou a civitas latina. A vida digital ainda não se fez apresentar como potente no espaço público. Seria preciso abordar isso com mais humildade. Pertenço a uma geração que fez seu mestrado em uma máquina de escrever e que viu a internet realmente funcionar com mais de 30 anos. Isso é uma nova forma de vida. O impacto disso não será percebido pelos que estão no "meio da onda" e nós, mesmo depois de toneladas de especulação, não sabemos onde isso vai dar, ou seja, onde isso vai se estabilizar. Ora, quando o espaço público é sentido, ele mesmo como indeterminado, isso cria um campo fértil para discursos regressivos. Discursos que querem substituir a indeterminação pela reedição de uma determinação prévia. Isso é o solo fértil para a unificação de todas as formas de violência em uma espécie de "grande mal" (em nome do qual o verdadeiro mal será realizado, é claro).
Nos mudamos para um condomínio para termos segurança 24 horas por dia e o que encontramos é a irrupção de novas formas de violência entre condôminos. Criamos a expectativa de que poderemos ser senhores em nossa própria morada, e o que acontece é que nos sentimos subalternos de um síndico e seu regulamento sádico
Em sua visão, qual a função da Psicanálise hoje, numa época em que não há privacidade, onde todos estão expostos totalmente, principalmente, por meio das redes sociais?
Dunker: A Psicanálise é tão múltipla quanto as formas de sofrimento que a tornam possível. Nossa oposição simples entre vida privada e vida pública deve ser suplementada por modalizações, níveis intermediários e espaços definidos por outras métricas. No fundo a Psicanálise está em boa posição, porque ela nunca se adaptou muito bem a essa distinção. O inconsciente é público ou privado? A pulsão é pública ou privada? Não funciona. Nem mesmo a redução boba da Psicanálise ao consultório privado, enquanto prática laboral liberal, funciona mais.
Para Lacan, Marx inventou o sintoma, ou seja, ele usou o método dialético para mostrar como aquilo que é negado por uma determinada forma de vida reaparece, de maneira modificada e ainda que não reconhecida em seus sintomas
Dunker: Sim, o marxismo está fora de moda. Ainda bem. Agora podemos pensá-lo como uma teoria séria que tem pressupostos diferentes da teoria liberal convencional. E podemos fazer isso sem o risco de imediatamente estarmos defendendo Cuba, os Gulags russos e todas essas formas de opressão que historicamente se apoiaram nas ideias de Marx para fazer uma espécie de ideologia de Estado. Marx não inventou a dialética, cuja forma moderna foi dada por Hegel, este sim um autor muito importante para Lacan. Para Lacan, Marx inventou o sintoma, ou seja, ele usou o método dialético para mostrar como aquilo que é negado por uma determinada forma de vida reaparece, de maneira modificada e ainda que não reconhecida em seus sintomas. Marx inventou o sintoma ao mostrar que ele depende de uma estrutura e de uma dialética. O que tentei arriscar em meu livro é dizer que Hegel inventou o diagnóstico. Não o diagnóstico clínico, apesar dele ter sido um grande leitor de Pinel, esse criador do alienismo. Hegel era um mestre da arte diagnóstica, porque seu método dialético exige que pratiquemos duas atitudes opostas. Primeiro é preciso ver as coisas exatamente como elas nos parecem, sem antecipações e preconceitos, ou melhor, incluindo radicalmente esses fatores no próprio objeto que eu estou percebendo, na sua fenomenologia. Em seguida, é preciso perguntar: o que é preciso negar para que o mundo se me apresente exatamente como estou vendo ele agora? Ora, se tem que ficar de fora para que as coisas adquiram essa aparência de unidade, coerência e consistência. A primeira atitude nos faz entender que tipo de estrutura de ficção está em jogo em uma determinada forma de sofrimento; a segunda atitude nos faz indagar qual é o real que está excluído nessa forma de vida. O que chamamos de realidade, a qual estamos sempre mais adaptados e conformes do que imaginamos, é esta combinação entre uma verdade, enunciada desde uma perspectiva, e o real, que é a negação de todas as perspectivas.
Como Lacan lidava com a dialética? É verdade que ele considerava que a própria Psicanálise é uma dialética?
Dunker: Do início ao f im de seu ensino, Lacan pensava a Psicanálise como uma experiência dialética. Não é invenção ou interpretação, basta ir aos textos. Mostrar que há um sujeito em jogo na Psicanálise e que esta é uma experiência dialética é o programa teórico e clínico que traz Lacan da Psiquiatria para a Psicanálise. Há consenso dos comentadores sobre isso. O que muda é seu próprio entendimento de dialética, que às vezes se aproxima muito do que alguns pensadores, como Adorno e Horckheimer, chamam de dialética negativa.
Por que diz que a relação entre dialética e Psicanálise ainda não foi explorada em toda sua extensão e implicações?
Dunker: Ocorre que isso torna as coisas mais complicadas, cria muitos pressupostos, sugere compromissos e, inclusive, leva Lacan a certos impasses que são os da tradição hegeliana. Por isso, é comum encontrarmos uma atitude típica de "condomínio" no interior da própria Psicanálise, dizendo que Hegel foi um pecado lacaniano de juventude, que o próprio Freud foi um acidente na trajetória de Lacan, que há uma primeira clínica e depois uma segunda, "pós-hegeliana", sem outro, monológica e assim por diante. Maneiras de inventar uma novidade ausente e de territorializar o caráter universalista do pensamento de Lacan.
As ideias lacanianas, de alguma forma, ajudam a entender a ideologia nos tempos de hoje, principalmente em função da ligação entre ideologia e a produção dos desejos?
Dunker: Sim. Pensadores como Zizek, Badiou, Laclau, Parker e entre nós Vladimir Safatle têm mostrado exatamente como a Psicanálise pode nos ajudar a entender articulações ideológicas da produção de desejos. Mas aqui há uma ressalva importante. Para fazer isso é preciso deixar o terreno no qual a clínica é soberana, e onde devemos satisfações éticas e epistemológicas à nossa longa tradição de cuidado de pacientes, e pensar que a Psicanálise torna-se apenas uma voz entre outras, junto com teorias críticas de todo tipo, junto com estruturalismos e pós- -estruturalismos, junto com marxistas e dialéticos, junto com feministas e teóricos da cultura ou da complexidade, junto com o que se faz de mais avançado em termos de teoria do cinema e de crítica da cultura, junto com todas as demais formas de pensamento que eu colocaria e definiria simplesmente como o pensamento da indignação. Indignação com os princípios de conformidade, adequação, produção e identidade que dão as cartas, hoje, na organização do mundo.
Lá fora eu percebi como a Psicanálise brasileira era alguma coisa. Como o duro que dávamos para achar os textos, para atender pacientes, para estar nas instituições, para nos digladiarmos nas universidades ou na mídia só podia significar uma coisa: estamos vivos. Já se disse que o Brasil produz pouca ciência e muita consciência
Durante seu pós-doutorado na Inglaterra, você teve contato com pessoas de vários países. A partir daí, o que mudou no seu entendimento do lugar social da Psicanálise e quais as diferenças da Psicanálise no Brasil em relação aos conceitos e práticas de outros lugares?
Dunker: De certa forma, esse novo livro foi gerado como consequência dessa experiência. Lá fora eu percebi como a Psicanálise brasileira era alguma coisa. Como o duro que dávamos por aqui para achar os textos, para atender pacientes, para estar nas instituições, para nos digladiarmos nas universidades ou na mídia só podia significar uma coisa: estamos vivos. Já se disse que o Brasil produz pouca ciência e muita consciência. E isso serviria para interpretar o fato de que há, proporcionalmente, muitas pessoas em ciências humanas e poucas nas ciências exatas. Aqui vem sempre o eco da Coreia ou do Japão, onde as engenharias dão o tom da conversa. Talvez isso possa se ligar ao incrível experimento de diferença social, opressão e inequidade que é o Brasil. Claro, isso pode ser lido como um déficit em relação a certo ideal de desenvolvimento, e é verdade. Mas minha perspectiva viu algo um pouco diferente. Entendi que por meio dessa trajetória nos tornamos um país cuja forma de vida é a crise, cuja precariedade sempre nos colocou em íntima relação com a contradição, cujo destino oscila entre o cronicamente inviável e a glorificação ufanista. Ora, sempre digo que a pujança da Psicanálise no Brasil não se deve ao fato de sermos banhados pelo rio Aqueronte (onde Freud disse que ia se dirigir para escrever a Interpretação dos Sonhos), mas pelo fato de que temos, comparativamente, muitos psicanalistas, temos uma cultura muito psicologizada, e isso se deve aos piores e melhores motivos, como tento mostrar em meu livro.
Em outros trabalhos, você abordou a questão prática da atuação clínica. Em sua avaliação, quais são as relações entre clínica, cura e Psicoterapia? Aliás, como se pode entender a noção de cura na Psicanálise?
Dunker: Esse é o problema central de meu livro anterior, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. De fato, se há uma ligação entre os dois livros ela remonta ao fato de que quando Freud começou a sua pesquisa sobre o inconsciente, ele partiu muito precisamente de um método, o método clínico, no qual ele se formou ao dissecar enguias e também ao estudar com Charcot, em Paris. O método clínico é uma disciplina, que emerge no interior da Medicina, em fins do século XVIII . O que não está claro é que ele não tem, em si, nenhuma pretensão intrínseca de cura. Ele é o que Freud chama, na própria definição da Psicanálise, de um "método de investigação". A problemática do sofrimento chega a Freud por outras vias. Vem dos práticos, dos terapeutas, dos aconselhadores de almas, dos retóricos e de todos estes que se especializaram durante séculos na cura pela palavra. Mas ocorre que aqui mudamos de novo a chave. O que os psicoterapeutas, no sentido antigo da palavra, têm em comum são as suas técnicas de transformação, seus efeitos de influência, seus manejos espontâneos da transferência, para o bem e para o mal. A cura é outra coisa. A cura é o campo, no qual o método de análise dos sintomas e a técnica de transformação do sofrimento pela palavra se cruzam em uma extensa área de reflexão e de prática ética. A cura é o que faz a noção de verdade em Psicanálise ter algum sentido, é o que faz Lacan dizer que a Psicanálise tem uma ética trágica, é o que fez Freud reconhecer os limites de sua ambição terapêutica diante de algo muito maior, que seu método não podia enfrentar com tantas pretensões. Algo que ele chamou de mal- -estar (Unbehagen). O que caracteriza o mal-estar é que ele não tem cura, ele é uma certa posição trágica no mundo, do qual não podemos sair e no qual estamos todos comum-pertencendo. É a angústia existencial, como a afirmou Kierkegaard, é o ser para a morte de Heidegger, é a náusea de Sartre, é o real que não cessa de não se inscrever, em Lacan. Hipócrates, ao fundar a Medicina, estabeleceu uma regra de ouro: curar o que pode ser curado, reduzir o sofrimento que pode ser reduzido e jamais tentar curar o que não pode ser curado. Esse incurável é o que está em jogo no mal-estar, e que nós, como profissão impossível, tentamos curar (não no sentido de eliminar, mas no sentido de destinar). Portanto: curar o mal-estar, mitigar o sofrimento e tratar o sintoma, eis as três dimensões que constituem a práxis da Psicanálise.
Qual a diferença entre clínica na Psicanálise e clínica na Psiquiatria?
Dunker: É uma diferença que está se avolumando rapidamente e que começou a fazer água logo após a Segunda Guerra Mundial. E está se avolumando desde que a Psiquiatria está deixando de ser uma clínica da palavra e passando a ser uma técnica de controle de sensações e redução de desprazer. Como química do conforto subjetivo, a Psiquiatria contemporânea está mais para uma tecnociência do que para uma clínica propriamente dita, ou seja, certa relação unificada da experiência do sofrimento, concernida à relação entre diagnóstica, semiologia, etiologia e terapêutica. Curiosamente esse afastamento está fazendo "bem para a relação". Como um casal que esteve junto durante um longo e penoso casamento, e que decide se separar, faz a partilha e começa a reconsiderar os méritos respectivos, a partir da realidade básica de que "somos muito diferentes". Claro que o ciúme dos filhos ainda perdurará por muito tempo, mas hoje estamos em uma divisão de tarefas mais clara: uns falam, outros prescrevem. Se a queixa se estende muito e tende a ficar complicada, saindo dos sintomas mais simples, enviamos ou para um educador ou para um psicanalista. Mas aqui, falando de um dos lados do conflito, posso provocar um pouco ao dizer que nós ainda fazemos clínica, os novos psiquiatras se esqueceram de como isso funciona.
A Psicanálise é tão múltipla quanto as formas de sofrimento que a tornam possível. Nossa oposição simples entre vida privada e vida pública deve ser suplementada por níveis intermediários e espaços definidos por outras métricas. No fundo a Psicanálise está em boa posição, porque ela nunca se adaptou muito bem a essa distinção
O sofrimento está mais ligado a causas físicas ou à perda da experiência de liberdade?
Dunker: Diria que o sofrimento é uma experiência moral. Mas posso usar o tema da dor ou do adoecimento orgânico para explicá-lo. Quando temos um ente querido que fica doente, ele imediatamente começa a sofrer, e seu sofrimento está, geralmente, ligado aos efeitos da sua condição. "Condição" quer dizer limite, cerceamento ou redução de potência. Estas limitações, como, por exemplo, não poder andar, não poder comer, não poder sair do hospital, ou inversamente condições compulsórias como ter que ficar na cama, ter que tomar remédios, ter que esperar resultados de exames, constituem a gramática de nosso sofrimento. Por isso, ele tem a ver com a interpretação da perda de liberdade. Aliás, os filósofos antigos, como Etiénne de la Boetie, abordavam assim o problema da liberdade: ela só se torna um problema quando se a perde. Mas há uma segunda diferença. Quando alguém fica doente é só aquele alguém que está tomado por um mau funcionamento de seu corpo. Mesmo que seja uma doença contagiosa, ela se individualizará como experiência em cada um dos doentes. O sofrimento é transitivista. Se seu amigo está sofrendo porque está doente, você sofre com ele. Ele sofre de novo com você, porque não queria preocupá- -lo, porque não queria trazer esse inconveniente, porque o está vendo sofrer com o sofrimento dele. E assim a cadeia de sofrimento se universaliza. Todos os outros que estimam aquele que sofre sofrem um pouco com ele, e ele sofre de volta, um pouquinho mais com o próprio sofrimento e com o que isso causa ao outro. O sofrimento é esta máquina infernal de transmissão, mas também de formação de uma experiência compartilhada. Creio que é este um dos motivos pelos quais nossa cultura cultiva e cultua a posição da vítima. Ela funciona como um ponto de universalização do sofrimento, pelo reconhecimento comum entre os envolvidos.
O déficit de reconhecimento, causado pelo excesso de ordem e de adaptação, pode transformar a forma de sofrer e, em contrapartida, causar apologia à desordem exagerada?
Dunker: Sim. Uma das diferenças importantes que tento estabelecer nesse livro é a que se dá entre a simples anomia, como sentimento de que não conseguimos interpretar as leis, as expectativas sociais e os ideais, da experiência produtiva de indeterminação, que é a quantidade e a qualidade de incerteza e de angústia, sem a qual nada de novo e de interessante pode acontecer. Os sistemas mundiais de diagnóstico em psicopatologia inventaram esta ideia de disorder (transtorno) para traduzir o fato de que as doenças mentais não são de fato doenças. Disorder é fora da ordem, desordem. Vem daí a nossa ideia intuitiva de que saúde mental é ordem, organização, método, discriminação, identidade, disposição. Nada menos ideológico e nada mais falso clinicamente. A maior parte de nosso sofrimento é sentido como problemático, porque ele admite como ponto de partida indiscutível a order, a ordem. Nossa proposta, em termos de uma psicopatologia crítica, é simplesmente argumentar que existem sofrimentos baseados na disorder e outros sofrimentos cuja gramática é a order. Existem patologias da desobediência (como os agressivos passivos), mas existem patologias da obediência, da obediência exagerada, como os TDAH .
Do início ao fim de seu ensino, Lacan pensava a Psicanálise como uma experiência dialética. Não é invenção ou interpretação, basta ir aos textos. Mostrar que há um sujeito em jogo na Psicanálise e que esta é uma experiência dialética é o programa teórico e clínico que traz Lacan da Psiquiatria para a Psicanálise
As novas formas de comunicação trazem algumas consequências negativas, como, por exemplo, a solidão, que hoje virou patologia, ou seja, sinônimo de fracasso. Quem está sozinho é porque não está conectado. Esse excesso de sociabilidade pasteuriza as relações?
O espaço público pode ser sentido como indeterminado, o que se transforma em solo fértil para a unificação das formas de violência em uma espécie de "grande mal"
Dunker: Em matéria de novidades "gozosas", e toda forma de novo laço social incluída nesta categoria, sempre há uma tendência a localizar no novo um potencial excessivo. E no antigo, aquilo mesmo que "perdemos". E isso tem um fundamento. Geralmente, os que desconhecem os perigos de algo são os primeiros a serem levados pelos riscos às tentações venenosas. Muita gente diz que essa sociabilidade digital não é uma verdadeira sociabilidade. Há certas expectativas que essa forma de vida não atende. De fato, a recusa da solidão pode ser tratada como uma ocupação, ou com o que Lacan chamou de gadget, no mesmo sentido em que a depressão pode ser tratada, selvagemente, com pinga (o que não significa que essa seja uma péssima ideia). Mas enquanto ignoramos que as pessoas inventam remédios para seus próprios males e que essas invenções são parte inarredável de uma forma de sofrimento estaremos sonhando com intervenções que ignoram o real em jogo, substituindo-o por um metodologismo condominial qualquer. A solidão é uma experiência muito importante, uma espécie de remédio natural para muitas coisas. Pergunte para uma mulher que deu à luz, digamos, há três ou quatro meses, e preste atenção como o seu sonho de consumo mudou abruptamente para: 5 minutos "para mim". Não estamos mais na Macondo de Gabriel García Márquez, e seus Cem Anos de Solidão, mas nos incrivelmente cobiçados 5 Minutos de Solidão. Por outro lado, o que você chama de pasteurização das relações é um curto- -circuito fechado de demandas e de circulação de direitos, deveres e expectativas, que facilmente transformam um casamento ou uma paixão em um empreendimento de administração e gestão de um condomínio (com eventuais disputas para ver quem é o síndico). Pode ter parquinho, área de segurança e todos os funcionários em ordem... mas vai terminar mal. Vai terminar no mal-estar.
Fonte: Revista Psique
Disponível em: <http://portalcienciaevida. uol.com.br/esps/Edicoes/114/ artigo355829-1.asp>. acesso em: 01 jul. 2015
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