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segunda-feira, 20 de julho de 2015

O legado do biógrafo de Freud

A obra de Peter Gay, além de apresentar o criador da psicanálise de maneira autêntica e rigorosa, restitui o personagem a seu lugar no pensamento ocidental

No momento em que a psicanálise redescobre o interesse pela sua própria história, chega com pesar a notícia do falecimento do historiador alemão Peter Gay, em 12 de maio. Graças ao seu monumental trabalho Freud: uma vida para o nosso tempo (Companhia das Letras, 1989), o autor se consagra mundialmente como o “biógrafo de Freud”. Porém reduzi-lo a esse título é dizer muito pouco, principalmente por dois motivos. Primeiro, porque escrever uma biografia do fundador da psicanálise não foi exclusividade de Gay. É fato que ele toma distância da história oficial de Freud, promovida por Ernest Jones nos três volumes de A vida e a obra de Sigmund Freud (Imago, 1989). Psicanalista, Jones apresenta uma escrita excessivamente contaminada pelo tom hagiográfico, privilegiando a conduta inabalável de Freud, possivelmente devido à sua proximidade com ele. Justiça seja feita, outros também se distanciaram da história oficial para uma escrita criativa e livre, como no singularíssimo exemplo latino-americano de Sigmund Freud – Século da psicanálise – 1895-1995 (Escuta, três volumes, 1995), biografia escrita pelo “argentino-baiano” Emilio Rodrigué.

Mas Peter Gay foi um dos grandes desbravadores na missão de aproximar a história oficial da psicanálise e a historiografia erudita – embasada em arquivos, com a devida consideração de documentos, textos e verdades factuais – sem “oficialismos”. Ele estabelece a narrativa sobre Freud não para exaltar sua figura lendária, mas sim – e sobretudo – para elevá-la à dignidade de seu invento. Isso equivale a dizer que, para além de Freud, a psicanálise se origina do solo histórico que lhe dá ensejo e, inversamente, que a compreensão da modernidade informa sobre o gênio criador de Freud. Em vez de delegar a tarefa de narrar o percurso de vida do criador da psicanálise exclusivamente a psicanalistas ou a jornalistas mais ou menos curiosos, Gay faz da biografia um trabalho histórico autêntico e rigoroso, ao mesmo tempo que restitui Freud a seu devido lugar no pensamento ocidental.
Em segundo lugar, porque Freud, para Peter Gay, é bem mais do que um simples objeto de estudo: ele é, em praticamente todos os momentos de sua obra, um verdadeiro interlocutor. Seu memorável trabalho Freud para historiadores (Paz e Terra, 1989), inexplicavelmente pouco lido e comentado no Brasil, é uma exploração de cruzamentos metodológicos da experiência intelectual freudiana com as teses da história da psicologia, herdada da mais profícua tradição historiográfica da Escola dos Annales. Nos cinco volumes de A experiência burguesa (Companhia das Letras, 1989), Peter Gay busca compreender as profundas transformações dos modos de vida da era vitoriana até, justamente, o destaque conferido à sexualidade pela doutrina freudiana.
Uma característica de suas teses sobre o Iluminismo e o Modernismo é a recepção da estética no campo das ideias: o atravessamento da literatura de Baudelaire e de Kafka, da música de Mozart a Schoenberg e Stravinsky, do teatro beckettiano e das pinturas da secessão vienense costuma compor o cenário dos livros do historiador, do mesmo modo que também não escapam aos seus olhos atentos os arquivos de diários íntimos, cartas de família, relatórios médicos e panfletos religiosos e políticos. Esse vasto conjunto de elementos faz de Peter Gay um historiador social da cultura e das ideias da mais alta envergadura na compreensão da experiência da modernidade. Seria impossível elencar tais elementos aqui exaustivamente pela extensão da obra, mas cabe sublinhar que, além dos textos propriamente ditos, suas valiosíssimas notas de rodapé são fontes generosas de uma inesgotável bibliografia percorrida por esse insaciável pesquisador.
Além de ter se dedicado ao ensino e à pesquisa nas universidades de Columbia e Yale, Peter Gay também era psicanalista, tendo realizado sua formação no Western New England Institute for Psychoanalysis e se tornado membro honorário da Associação Americana de Psicanálise, em 1985. Os Estados Unidos que o abrigariam ainda na infância fugido do nazismo, em que ele passa a sua vida, será, curiosamente, o mesmo país que acolherá anos depois uma grande parte dos arquivos pessoais de Freud, sob a tutela da Livraria do Congresso, em Washington. Imagino que, estando ele devidamente abrigado nos documentos de Freud, não deve ter sido nada fácil para um historiador honesto presenciar o florescimento de certa escola revisionista americana que (ainda) insiste em criticar ou vilipendiar Freud e a psicanálise por meio de uma historiografia caluniosa e inverossímil.
Se há hoje na história da psicanálise uma verdadeira batalha contra o revisionismo antifreudiano e contra um biografismo reduzido a mera coleção de notas e curiosidades do percurso da vida do biografado, o pensamento e a obra de Gay são uma verdadeira lição de método de como se posicionar de maneira honrosa nesse tipo de contenda. Peter Gay pôde ser o biógrafo que foi graças ao historiador que era: um intelectual digno desse nome. Ele nos deixa com a tarefa de levar adiante o legado da historiografia erudita da psicanálise – um legado para o nosso tempo.

Rafael Alves Lima é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP), autor de Por uma historiografia foucaultiana para a psicanálise: o poder como método (Via Lettera, no prelo) e organizador de Clinicidade: A Psicanálise entre Gerações (Juruá, no prelo).

Fonte: Scientific American Mente Cérebro

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