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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Ser ou estar?

A realidade de cada um é construída de acordo com a biologia, experiências pessoais, valores e expectativas pessoais.


outubro de 2013
Suzana Herculano-Houzel
 
 
Eu detesto a onda de pseudociência baseada, com licença poética abusiva, em uma versão fantasiosa da pobre da física quântica, popularizada por livros como O segredo e aquele filme maldito, Quem somos nós. Detesto por uma série de razões, entre elas a mensagem vil (para não dizer totalmente incorreta) de que não é preciso fazer nada para melhorar nossas vidas – quer dizer, nada além de pensar positivamente, pois sua consciência teria a capacidade de mudar a “realidade quântica” do mundo. (Ah, não funcionou e o colar de diamantes não apareceu no seu pescoço, nem o cheque no correio? Você não mentalizou direito. “Venha fazer um curso conosco e aprenda a mudar o mundo com o poder do pensamento!”)

Apenas uma ideia nisso tudo se salva e, ainda assim, apresentada muito tangencialmente por trás da propaganda toda: a noção de que, em vários sentidos, não somos, masestamos. A diferença entre ser e estar vem aos poucos sendo consolidada pela neurociência, ainda que poucos sejam os estudos que a abordem explicitamente. Estamos, e não somos, no sentido de que a realidade de cada um de nós é diferente, construída de acordo com biologia, experiências pessoais, valores e expectativas. Não o Real, aquilo que é externo ao corpo; este é alheio à nossa existência e não depende de qualquer atividade mental, embora possa ser mudado à força de mãos, martelos e bombas. Mas a realidade que cada um usa para navegar o Real, esta sim é uma hipótese de trabalho, construída e reconstruída a cada instante pelo cérebro graças aos sentidos – mas tingida das cores pessoais de cada um.

Assim seu corpo está de certo tamanho e em certo lugar – mas pode encolher ou aumentar instantaneamente, ou até ser transferido para um manequim ou o avatar na tela do computador, graças a truques tão elaborados como realidade virtual ou tão simples como imagens e toques sincronizados. Ou graças ao uso de ferramentas agora já tão habituais que a transformação passa despercebida: assim você incorpora ao seu esquema corporal o lápis, os talheres, a pinça, e até mesmo o carro que dirige. Assim, também, duas pessoas interpretam de maneiras radicalmente diferentes a mesma frase dita por uma terceira – ou, num bom dia, você ouve favoravelmente um comentário da sua esposa, e num mau dia, acha o mesmo comentário insultante. Viver como um ser que continuamente está tem um lado bom de permitir uma abordagem personalizada do mundo. Por outro lado, às vezes oestar dá errado, pois não mais corresponde bem o suficiente com o Real para servir de guia útil pelo mundo. Em depressão, julgamos estar pior do que de fato estamos; em estado maníaco, ao contrário, criamos uma realidade brilhantemente cor-de-rosa que não representa os acontecimentos. Em delírio, como na esquizofrenia ou na mania mais exacerbada, pode-se até estar em um mundo que fala com vozes e imagens que não pertencem ao Real. Mas é justamente o estar que permite o tratamento – e a volta a um estado mais útil, porque melhor representativo do Real.

Essa volatilidade toda, ainda assim, tem uma âncora ao longo do tempo e do espaço: você, essa unidade particular de cérebro e resto do corpo e história de vida. Esse conjunto é o que você é: o seu ser, finalmente – embora seja um conjunto também construído pelo cérebro e portanto meio que paradoxalmente também volátil. Enquanto estiver razoavelmente intacto, e dotado de memória, ele consegue costurar os seus vários “estar” ao longo da vida em um único “ser”. Mas vai-se o cérebro... e fica só  a impressão deixada na realidade dos outros.
 
Fonte: Scientific American mente cérebro
 
Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/ser_ou_estar_.html>. Acesso em: 16 out. 2013 

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