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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Cercas, muros e silêncios

Saber da existência de atrocidades nos faz recuar da extensão de "nós", como se tivéssemos de nos defender atribuindo a origem e a responsabilidade da tragédia a "eles"

Christian Ingo Lenz Dunker

Kwame Anthony Apiah, um dos renovadores do pensamento liberal contemporâneo, em sua recente conferência em São Paulo, apontou que o modo como “sabemos” de certas situações que envolvem vergonha, humilhação e desonra nos levam a efeitos sistêmicos corrosivos em termos de sentimentos morais. São aquelas pequenas ou grandes situações em relação às quais sabemos que algo está errado, mas não sabemos suficientemente de modo a produzir uma reação transformativa. O filósofo de origem anlgo-ganesa lembra que quase 1% da população americana encontra-se encarcerada, sujeita a abuso sexual e desrespeito continuado. Guantánamo, uma prisão americana “fora da lei” em território cubano, não é apenas uma anomalia política ou um impasse jurídico, mas também uma espécie de bomba de retardo e dispersão moral. “Saber” que isso ocorre entre “nós” nos torna moralmente piores, mesmo que tentemos nos convencer de que não há nada a fazer. Obviamente tudo depende do que significa “saber” e “nós”. Saber da existência de atrocidades nos faz recuar a extensão de “nós”, como se automaticamente tivéssemos que nos defender atribuindo a origem e responsabilidade da tragédia a “eles”. Esta estratégia pode ser chamada de cercamento, pois isola e determina o mal-estar em uma área exterior, visível e controlada, comprimindo e protegendo o “nós” em um território interior. 

O livro Poder e desaparecimento (Boitempo, 2012), de Pilar Calveiro, sobre as experiências de desaparecimento de pessoas, vivida pelos argentinos durante o regime militar, também aborda esta patologia do “saber”. A população argentina sabia da existência dos campos de concentração. Filhos, parentes e conhecidos subitamente “sumiam”, mas o fenômeno estava sujeito a uma estranha nuvem de imobilização e desamparo. Neste caso não é o tamanho do “nós” que diminui, mas é a extensão do “saber” que fica retida por uma espécie de muro de mal-estar atrás do qual tudo o mais é invisível. Como se o que não podemos ver, não pudéssemos também saber.

Daniela Arbex, autora de Holocausto brasileiro (Geração Editorial, 2012) também aborda o problema do “saber” sem saber, ao investigar a colônia psiquiátrica de Barbacena. Ali, milhares de doentes mentais, errantes, pobres e inimigos políticos do Estado foram “desaparecidos”. Mais de 60 mil mortes ocorridas em meio a maus tratos, eletrochoques e descaso testemunham o que o italiano Franco Basaglia, idealizador da reforma psiquiátrica, chamou de “campo de concentração à brasileira”. Neste caso temos as duas estratégias combinadas: a extensão indeterminada do “eles”, delimita o acervo de nossos adversários morais, que cercamos do lado de fora; e os muros, não nos deixam saber sobre os rastros de memória daqueles que desaparecem. 

Reencontramos aqui as duas patologias sociais descritas por Hegel em inícios do século 19, quando a literatura romântica começa a ocupar o espaço das narrativas religiosas na formação de nossos sentimentos morais: a solidão, que associamos ao cerco e o isolamento que decorre dos muros. No primeiro caso nossa defesa será a impotência (“o que podemos fazer diante disso, uma vez que somos tão poucos ou tão fracos”). No segundo caso nosso recuo apela para nossa distância com relação à responsabilidade (“isso diz respeito ao poder público e ao Estado, que “sabe” e tem a devida competência para agir”). A confluência entre muros e cercas é naturalmente o silêncio, por meio do qual nos recolhemos a nossa pequenez individual (o menor “nós” que pode haver) e ao sentimento de que no fundo não sabemos direito o que está acontecendo por trás dos muros. E quando a equizoidia dos cercos se casa com a paranoia dos muros isso nos leva ao silêncio melancólico.
 
Fonte: Scientific American mente e cérebro
 

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