Cada geração de analistas é convocada a pensar sobre as questões típicas de sua época. Cada época tem suas particularidades sociais e culturais, indissociáveis das manifestações psicológicas dos indivíduos. Atualmente, é inegável a presença maciça do tema “medicação psiquiátrica” na vida das pessoas. Como o psicanalista, que também exerce a psiquiatria compreende a prescrição de psicotrópicos no seu trabalho clínico? Vamos conversar com o psicanalista e psiquiatra Gustavo Gil Alarcão*.
Luciana: O que te levou a elaborar um pensamento sobre a relação entre a clínica psicanalítica e a medicação psiquiátrica?
Gustavo: A realidade contemporânea e a necessidade de pensar a prática clínica de forma crítica, partindo da realidade que encontro no consultório, no hospital (Instituto de Psiquiatria) onde trabalho e nas conversas com colegas. O que significa pedir ajuda psíquica, seja para Psicanálise (ou outro campo correlacionado), seja para a medicação? Vivemos em uma época abarrotada de medicações, técnicas e testes psicológicos e gurus de comportamentos com manuais de ajuda e promessas de uma vida melhor, quase um tempo da banalização, no sentido que Hannah Arendt desenvolveu. Muitas pessoas tomam remédio atualmente, sem saber por que e para quê; quando muito se apoiam em noções superficiais de patologias e sintomas psiquiátricos. Acredito ser muito pertinente a distinção entre o que é medicar e o que é entorpecer e, sobretudo, qual o papel dos profissionais nesse âmbito. O debate atual é muito mais político e econômico do que necessariamente clínico. Acredito que há também
certa confusão no trato desse tema, medicação (ou psiquiatria) e psicanálise caminham por sentidos diferentes. E é aqui que o debate pode se tornar interessante, se pusermos a nos perguntar: o que pretende um psiquiatra? E também, o que pretende um psicanalista? E acima de tudo, o que pretendem as pessoas que procuram estas ajudas?
Luciana: O que pensa da afirmação da psicanalista francesa, Roudinesco, de que: “os psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar significação”?
Gustavo: As medicações como qualquer substância têm seus efeitos próprios, que muitas vezes são benéficos. O uso que cada um faz destes efeitos é que me parece importante, e aqui entra a busca por significado; significados do que se sente, do que se vive, do que se busca na vida. Se alguém usa medicação ou qualquer outra substância como forma de “fugir da vida” – em que pese a necessidade de algumas escapadas para todos – e adota esta prática como seu eixo condutor, penso estar se privando da própria vida. Nesse sentido, está tentando eliminar qualquer sentimento difícil, criando uma realidade fantasiosa de normalidade plena e ausência de problemas: está se entorpecendo e não tem muito interesse em buscar significados para si (ou está muito amedrontada para isso). Se alguém usa medicação ou outra substância de forma crítica, pensada e, sobretudo, responsável, em algumas situações na vida, não vejo problemas, ela pode estar favorecendo a sua própria busca de significados. Parece-me importante pensar a atuação dos profissionais nesse caso. As pessoas são livres para decidir que caminhos tomar na vida, como querem fazer uso dos remédios, mas penso que aos profissionais caberia o papel de questionar, ampliar a capacidade de pensar e não somente atestar a busca por este alívio imediato.
Luciana: Quando há vantagens no uso de psicofármacos durante o processo de análise e por quê?
Gustavo: As vantagens são muitas. Os remédios provocam efeitos e em algumas situações efeitos realmente necessários para aquele sujeito. Nem sempre estamos disponíveis para nós mesmos, nem sempre estamos em condições de mergulhar em nossa intimidade. Algumas destas travas podem ser facilitadas pelo uso de medicação. Gosto muito do verso de um poema de Viviane Mosé: “Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos”, e pensando assim, o remédio facilita o acesso àquilo que está “preso”. Os remédios podem destravar aquilo que está estagnado, como também conter aquilo que está desmedido, excessivo. São ferramentas, assim como os óculos que usamos para ler. Óculos sozinhos não fazem o menor sentido, óculos em pessoas que não têm vontade, não querem enxergar também não. A pessoa que busca uma análise está em uma empreitada pessoal para se conhecer e lidar consigo mesma e com o mundo sob outra perspectiva (ela quer se enxergar!), o sofrimento pode ser parte desse processo (parte da vida, diria). Intoxicar-se seja por sofrimento, seja por remédio é problemático.
Luciana: Quando há desvantagens e por quê?
Gustavo: As desvantagens são nítidas quando a medicação está sendo usada como um entorpecente ou como um anestésico mágico, ou seja, está sendo usada para distanciar a pessoa de si mesma e de sua realidade. As desvantagens não são só para a análise, mas para a própria pessoa, que mais cedo ou mais tarde “cairá na real”. Quando digo entorpecer estou me referindo aos efeitos de distanciamento da realidade, ilusão de satisfação plena, sensação de prazer e poder inigualáveis, ausência de qualquer sentimento doloroso, além de uma despreocupação com a realidade circundante. No campo da análise, é imprescindível a noção de angústia pessoal, de conflito e de vontade de se responsabilizar pela própria vida. Estas questões ficam prejudicadas com a expectativa de uma vida entorpecida.
Luciana: Como compreende a medicalização da sociedade contemporânea? É mesmo necessário receitar tanto antidepressivo para a população?
Gustavo: Certamente não! Mas, se aqueles que receitam não enxergam muito além de quadros sintomáticos, sem outros significados; se estes mesmos pensam que a vida se restringe a ser doente ou não, como esperar algo diferente? Durante os anos de formação em psiquiatria, não foram raras às vezes em que escutei (e os residentes de psiquiatria que hoje estão estudando conhecem bem esta situação) de colegas mais experientes: “não pergunte as razões, não pergunte os motivos, não tente compreender, estamos aqui para identificar sintomas”- posso ter sido azarado com estas experiências, o que não creio, já que continuo a observar esta mesma postura, para mim, no mínimo criticável. Se esta é a ideologia transmitida, se este é o repertório dos profissionais como esperar outro ato que não a prescrição?
Luciana: Por quê tantos antidepressivos tão específicos estão no mercado? Eles têm mesmo o efeito que pretendem ou há uma estratégia de marketing se sobrepondo ao problema da saúde?
Gustavo: As relações entre os campos de conhecimento e outros campos da vida são complexas. Não há como deixar de incluir aspectos políticos, econômicos, sociológicos e ideológicos nessas análises mais estruturais. O primeiro antidepressivo data de 1957 e de lá para cá muito se criou. A psiquiatria passou por uma enorme modificação conceitual ao longo desse tempo, deixando de adotar posturas conceituais e teóricas para utilizar manuais diagnósticos ateóricos. É um debate complexo. De certa forma foram relegados pensamentos, as questões psíquicas de forma mais complexa e, porque não, profunda. Estamos falando de dilemas cruciais da vida de uma pessoa. Além disso, o individual e suas nuances estavam sempre no centro da discussão, como se aprende em qualquer faculdade de medicina: “cada caso é um caso”, “tratar o doente e não a doença”. Com a possibilidade de se produzir medicações em escala industrial, a forma de pensar a psicopatologia também se modifica e as atuais tendências caminham nesse sentido: generalizar observações para atingir um maior número de pessoas. Será mesmo que vivemos uma epidemia de “doenças mentais”? Ou será que se criaram metodologias que autorizem estes pensamentos e práticas e com isto a prescrição cada vez maior de medicação? Ser psiquiatra não significa necessariamente ser prescritor de remédio, mas pesquise quantos são aqueles que dizem não a um pedido inadequado de um paciente. E mais, como fazem quando percebem que a questão não é medicar? O que dizem aos pacientes? Encaminham ou se prestam a dar conselhos moralistas e comportamentais, dizendo o que devem ou não fazer seus pacientes, sem fazê-los pensar por si próprios? Paira no senso comum a ideia de que psiquiatra dá remédio e psicólogo conversa. De certa forma, esta tendência foi se estabelecendo, mas acredito ser possível ampliar a discussão. O marketing só torna a questão mais difícil porque veste ideologias muito complicadas com belas roupas, se não estivermos dispostos a tirar estas roupas ficamos com as propagandas, que sim, são maciças e visam preponderantemente lucrar.
*Gustavo Gil Alarcão é psicanalista filiado ao Instituto de Psicanálise da SBPSP, psiquiatra do Serviço de Psicoterapia do IPq HCFMUSP, Membro do corpo diretivo da Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno- Estrutural SBPFE
Fonte: ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria
Disponível em: <http://www.abp.org.br/portal/ imprensa/clipping-2>. Acesso em: 31 out. 2013