Enquanto Cinderela é uma princesa com direito a fada madrinha, sapatinho de
cristal e fica quietinha até ser feliz para sempre com o príncipe, Mulan vai,
literalmente, à luta. Finge que é menino; na guerra cai de amores por um capitão
e tem um final feliz muito menos explícito. Foi pensando nessas princesas tão
diferentes entre si, mas de uma mesma marca tão forte, a Disney, que a
antropóloga Michele Escoura, da Universidade de São Paulo (USP), resolveu ir a
campo. E seu estudo, com mais de 200 crianças de escolas públicas e particulares
de São Paulo, pode oferecer aos pais pistas de como ensinar seus filhos (meninos
e meninas) a brincar melhor, tornando-os mais tolerantes, menos consumistas e
mais realistas com questões como os ideais de beleza e do amor romântico.
Michele acompanhou o dia a dia das crianças, todas com 5 anos. Viu, em muitos
casos, meninos se afastarem de meninas na hora em que elas iam brincar de
princesa. O mesmo na hora de os meninos brincarem de carrinho. Ou seja, “o
brinquedo sendo, desde cedo, usado para demarcar gênero e também para excluir”,
segundo a pesquisadora. Um menino chegou a ser “zoado” por coleguinhas (de ambos
os sexos) por usar um óculos preto, de corações.
- Ele se voltou para a professora e disse: “Tia, não entendo porque zombam de
mim, meu óculos é preto, se ainda fosse rosa...- conta a antropóloga. - Ou seja,
além dos brinquedos, há uma separação do gênero pela cor (preto) e pelo símbolo
(coração).
‘Para ser princesa precisa se casar’
Para Michele, as crianças poderiam ser deixadas mais livres para se
expressar, ter liberdade para experimentar.
- Acho que a sociedade só teria a ganhar.
Depois, foi a hora de exibir “Cinderela” e “Mulan”, pedindo para que as
crianças contassem o que acharam do filme. Entre os elementos captados, estão a
necessidade do vínculo conjugal com o príncipe, ou ainda o padrão estético de
beleza e de comportamento. Muitas crianças tiveram problemas em identificar
Mulan como princesa. Uma razão era o fato de a personagem chinesa não apresentar
um padrão estético (de beleza e comportamento) igual ao das princesas clássicas.
Ou, mais importante, pelo final do filme não deixar claro se Mulan se casa ou
não.
- Uma das crianças foi taxativa: Tia, Mulan não é princesa. Para ser princesa
precisa se casar, não é? Senão não vai ser princesa, vai ser solteira! - recorda
a antropóloga.
Mulan ainda foi vista como não princesa “porque brigava”, especialmente pelos
meninos. Já a Cinderela era princesa porque “era bonita”. Ou seja, as bonitas
tendem a se casar. As diferentes, nem tanto. A pesquisa observou muitas meninas
alisando e pintando o cabelo de suas bonecas de louro, só para citar um exemplo
de comportamento. Esses padrões, segundo Michele, foram semelhantes nas redes
pública e privada de ensino. Se na rede privada as crianças, muitas vezes, já
viajaram para a Disney e têm bonecas e fantasias oficiais, na rede pública o
consumo da marca vem em produtos comumente não licenciados, como itens de
papelaria ou vendidos em camelôs. Mas o fato é: as princesas da Disney são
consumidas por todas as crianças.
Procurada, a Walt Disney Company não comentou a pesquisa com as princesas. As
dez personagens oficiais (a mais antiga é a Branca de Neve, criada em 1937) e as
sete princesas não oficiais (como Alice e Sininho) correspondem a uma importante
parcela do faturamento da empresa, que foi de US$ 5,7 bilhões em 2012.
Longe de querer que as crianças se afastem completamente deste mundo
encantando, a antropóloga da USP só acha que a brincadeira, e principalmente a
forma de brincar, é que precisa ser mais diversificada, um alerta para pais,
babás e professoras.
- Não criaríamos adultos mais bacanas se, quando crianças, a menina achasse a
Mulan incrível por ser guerreira e capaz de transformar seu destino? Ao
contrário de uma linda, magra e loura que só faz aparecer bonita e o mundo
inteiro a ajuda? Se os meninos brincassem de boneca e as meninas de carrinho? Se
elas gostassem de azul e eles de rosa? Se o menino dos óculos de coração pudesse
usar o que quisesse? Preconceitos são transferidos às crianças - acredita
Michele, que adoraria ver uma “princesa gordinha, mais velha ou deficiente
física”.
Mãe de Paola, de 3 anos, e Luiza, de 1, Alessandra Lima Ganimi iniciou o
Jolie Folie, um serviço de festa infantil artesanal, justamente por ter se
cansado de festas “cheias de frufrus”. Ela diz que não tem jeito: dos 3 aos 5
anos, não têm para ninguém, 80% das meninas só querem saber de festa de
princesa.
- É uma mistura do que os pais falam, do que elas veem na escola, e claro, há
a questão mercadológica muito forte. Tenho uns amigos que têm filhos que odeiam
que os meninos brinquem de boneca. Mas eu não acho nada demais, estimulo minhas
filhas a terem o brinquedo que quiserem. Eu mesma chamo meu marido de ogro e não
de príncipe - diz Alessandra.
Paola não tem dúvida: indagada se prefere Branca de Neve (sua princesa
favorita) ou Batman, ela responde: “Batman”! E por quê? “Porque sim, gosto mais
dos super heróis”.
Estímulo à imaginação
Mãe de um casal, Joana, 7 anos amanhã, e Tomás, 2, a economista Flávia
Gonçalves acha que as meninas de 5 anos estão mesmo na “idade de sonhar e de
fantasiar, e as princesas são uma maneira de estimular sua imaginação, além de
fazê-las perceberem o quanto são diferentes mesmo dos meninos”.
- É uma questão biológica. Meu filho nunca pegou a boneca da irmã e fez
carinho na cabeça dela, nunca pôs a boneca no colo. E nunca o proibi de fazer
isso. Acho que a “vida real” eles experimentam em casa, na relação deles com os
pais. Ela sempre se sobrepõe ao mundo da fantasia - acha Flávia.
Professora de psicologia da PUC de São Paulo, Silvana Rabelo concorda que os
pais têm um papel muito mais importante do que o das princesas na construção da
identidade das crianças. Mas alerta ser justamente nesta fase, a dos 5, 6 anos,
que elas começam a se interessar em entender se são meninas ou meninos.
- Depois dos 6 anos isso cai em esquecimento até a adolescência, quando a
sexualidade vem com força. Por isso é importante os pais avaliarem como as
crianças elaboram a afetividade nesta fase, que influencia a vida
adulta.
Fonte: Jornal O Globo
Disponível e: <http://oglobo.globo.com/saude/estudo-com-princesas-da-disney-mostra-que-importante-variar-brincadeira-7976057#ixzz2PDOGkkaa>. Acesso em: 01 abr. 2013.
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