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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Rotina no Corredor da Vida


Profissionais-chave nas UTIs, os médicos intensivistas lidam diariamente com a luta extrema pela sobrevivência. Ao entrarem nas salas de acesso restrito, levam as próprias histórias, as expectativas da família dos pacientes e os perigos inerentes à existência humana.
 
Todo dia ela faz tudo sempre igual, mas completamente diferente. Há mais de duas décadas, a pediatra Débora Nunes, 51 anos, acorda, põe o jaleco branco e, quando chega ao hospital, passa pela porta que sinaliza o acesso restrito. Ela entra calada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pediátrica e neonatal do Hospital Anchieta, em Brasília, e passa em cada leito para ver seus pequenos pacientes. Apesar da rotina, a médica intensivista nunca sabe que tipo de paciente chegará ao local onde a luta pela sobrevivência é levada ao extremo.

O desconhecido, entretanto, não existe só para a equipe de profissionais de saúde envolvida na terapia intensiva. Para mães, pais, avós e colegas, ter passe livre ao local de acesso restrito é quase sempre apavorante. Em um único ambiente, são vários leitos divididos por cortinas que conferem uma certa privacidade ao paciente. A divisão visual, entretanto, não se replica à sonora. Os bipes das máquinas são constantes, os choros, as risadas, são todos ruídos compartilhados. O fluxo de pessoas também é intenso. De tempo em tempo, há a visita das equipes compostas por médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, infectologistas e tantas outras especialidades. 

“Na primeira entrada na UTI, existe um impacto grande, a pessoa fica um pouco paralisada, não sabe direito para onde olhar. Ela tem medo de olhar o familiar internado daquele jeito, ela ouve o bipe do monitor, vê o respirador, vê que é muita gente circulando”, relata Débora. Para o estresse dos familiares, o remédio que a intensivista dá é carinho e atenção. Um dos seus primeiros desafios é conquistar a confiança dos pais e deixá-los seguros de que a equipe profissional está ali para olhar as máquinas e os bipes. A função dos familiares é olhar para o bebê e acreditar no seu potencial de recuperação.

A história profissional de Débora é repleta de ensinamentos adquiridos de sua experiência pessoal e afetiva. Aos 6 anos de idade, a médica presenciou a angústia da morte de seu irmão, vítima de poliomielite. “Eu já perdi um irmão dentro de uma terapia intensiva. Ele já estava em um estágio muito grave, tetraplégico, não movimentava nada”. Ela conta que, na época, os pais não podiam ficar o tempo todo dentro da UTI e, por isso, a mãe passava noite e dia dormindo em um banco de madeira ao lado da unidade intensiva. “Teve um momento em que ela disse que estava muito cansada. Ela sentiu que alguém de branco se aproximou, lhe massageou os pés e os colocou em uma bacia de água quente. Foi a primeira vez que a minha mãe conseguiu dormir profundamente naquele banco duro”, conta. 

Ao acordar, a mãe de Débora percebeu uma correria na UTI. Era seu filho que tinha morrido. “De alguma forma, ela foi preservada desse momento de dor absurda de perceber o filho morrendo, porque alguém deu amor e carinho a ela”. Para a intensivista pediátrica, pode ter sido um anjo. O episódio marcou tanto a vida de Débora que ela definiu que, em sua profissão, nunca se permitiria desumanizar, nunca deixaria de se colocar no lugar de um pai, de uma mãe, de um irmão ou de um tio. “Às vezes, a criança nasce completamente malformada, mas a família esperava muito por ela e a quer completamente malformada. E o que for necessário a gente tem que fazer”, defende. 

Formação demorada

Apesar de a UTI ser um lugar que desperte medo nas pessoas, Marcelo Maia, 49 anos, coordenador médico do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Santa Luzia, reforça que 90% dos internados conseguem sobreviver e se recuperar. “Quanto mais rápido você tratar o paciente, mais respostas positivas terá. Colocamos todos os nossos esforços nos três primeiros dias, essas horas são cruciais”, afirma. Ainda que os avanços tecnológicos tenham permitido o sucesso da maioria dos tratamentos intensivos, o cirurgião acredita que um bom profissional faz toda a diferença. “A formação de um médico intensivista é muito demorada, não leva menos de 10 anos para se tornar um bom profissional apto a tratar de pacientes críticos.” 

Além do conhecimento médico, Marcelo reforça que o dia a dia no centro de terapia intensiva proporciona diversas experiências inusitadas e até mesmo “pitorescas”. Ele relembra o caso em que o paciente internado tinha duas mulheres, uma oficial e outra extraoficial. Marcelo teve que abrir uma exceção nos horários de visita para que as duas mulheres não se encontrassem. A relação com os familiares também é muito diferente da que o médico tem nos consultórios. “Há paciente que fica internado por um período muito longo e a gente acaba lidando com a família todos os dias. É impossível não se envolver. Às vezes, você acaba resgatando problemas que não são do paciente em si, a família vem e desabafa com você. Tem dias que isso aqui vira consultório de psicologia”, brinca. 

A jornada, no entanto, não é fácil. Entre os profissionais da terapia intensiva, é frequente o quadro da síndrome de burnout, tensão emocional ocasionada pelo esgotamento no trabalho. Já para os pacientes, a perda da noção de dia e noite pode levar ao estado de confusão mental durante o período de internação. “É por isso que toda unidade tem que ter janelas para permitir a entrada de luz natural. A falta de conexão com o ambiente externo pode deixar o paciente melancólico, hipoativo e com desconexão verbal”, alerta Maia. 

Gestão de desastre 

Se em situações normais de atendimento, a logística das unidades intensivas já é complexa, tragédias como o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), requerem um esforço muito maior dos profissionais intensivistas. Cristiano Franke, presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do RS, trabalha em dois hospitais públicos de Porto Alegre que, juntos, receberam 28 pacientes em estado grave que estavam na boate no fatídico 27 de fevereiro. 

“Não vou falar nem em meu nome, mas o evento impactou muito toda a equipe de trabalho das unidades. Foi alto o nível de estresse, porque, além da sobrecarga de atividade normal, por se tratar de jovens, a tragédia gerou uma comoção maior nos profissionais de saúde também”, relata. Para atender a demanda excepcional de pacientes graves, as unidades em que o médico atua recrutaram equipes extras. “Na gestão de desastres, o que a gente precisa é estar mais preparado. Felizmente, tivemos um resultado interessante no caso de Santa Maria, mas os hospitais do nosso país não estão preparados para isso. Tem de estar preestabelecido para todas as unidades a exigência de dobrar ou triplicar a capacidade de atendimento sem precisar de ajuda externa.” Segundo ele, as autoridades públicas têm de estar mais atentas a isso e não agir somente quando a demanda aparece. De acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, cerca de 53% das UTIs não têm sequer um médico intensivista titulado.

Recuperação acelerada

A precursora da unidade de terapia intensiva foi a enfermeira inglesa Florence Nightingale. Durante a Guerra da Crimeia, iniciada em 1853, ela decidiu juntar pacientes graves em uma única enfermaria para dar mais assistência, foi então que se verificou a recuperação acelerada dos soldados. No Brasil, as UTIs que conhecemos hoje foram implantadas somente a partir de 1970.
"Às vezes, a criança nasce completamente malformada, mas a família esperava muito por ela e a quer completamente malformada. E o que for necessário a gente tem que fazer". Débora Nunes, intensivista pediátrica.
 
Três perguntas para

Elias Knobel, cardiologista 

O que motivou o senhor a escrever o livro Memórias agudas e crônicas de uma UTI?
Eu fundei a UTI do Hospital Albert Einstein, fiquei 32 anos, e continuo atuando como cardiologista de pacientes graves. Em alguns dos meus livros, eu resolvi explorar um lado que normalmente não é visto na UTI, que é um lado humano. Além do tratamento do paciente, tem histórias curiosas, engraçadas. Tudo o que você pode imaginar acontece lá dentro, é um mundo dentro de um mundo. 

Por que os pacientes internados por diferentes motivos ficam em um mesmo local?
Quando eu me formei, na época da residência, eu me lembro que, quando um paciente fazia uma cirurgia, ele ia para um andar e, quando tinha uma encrenca à noite, vinham múltiplos especialistas olhá-lo. No outro andar, acontecia a mesma coisa, no outro, também. Você tinha equipes em cada andar. Resolveu-se criar, então, um centro de recuperação de cirurgia, que são os embriões da UTI. Surgiu a necessidade de concentrar tudo no mesmo local, com equipamento, tecnologia e recursos humanos.

Quais são os maiores dilemas que o intensivista enfrenta?
O médico intensivista é olhado pela família como um indivíduo ideal, ele tem que ser um indivíduo com boa formação, tem que ser respeitoso, ter boa aparência e espírito humano. Acontece que ele é um indivíduo como outro qualquer e está lidando com pessoas cuja a vida está por um fio. É muita pressão. Além dos pacientes, ele tem a família dele, os filhos dele, os problemas próprios, as necessidades próprias. Como não são valorizados como deveriam pelas instituições, hoje em dia você tem cada vez menos médicos querendo fazer a especialização em terapia intensiva no Brasil e no mundo.

Fonte: Jornal Correio Brasiliense via Associação Brasileira de Psiquiatria
 
Disponível em: <http://www.abp.org.br/portal/imprensa/clipping-2>. Acesso em: 26 fev. 2013.

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