Poucas descrições sobre o suplício das noites maldormidas são tão pungentes (e precisas) quanto o poema Insônia, do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), sob o heterônimo do grandiloquente Álvaro de Campos:
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
No Brasil, 76 milhões de homens e mulheres têm problemas para dormir. Deles, 22,8 milhões são insones crônicos, quando a tortura de não pregar os olhos (apesar do sono) se repete três vezes por semana, por, no mínimo, três meses. Até recentemente a grande esperança da medicina contra as noites em claro concentrava-se, sobretudo, nos remédios. O tratamento com medicamentos tem eficiência comprovada e os inevitáveis efeitos colaterais. Por essa razão, ganha espaço nos consultórios médicos o uso da terapia cognitivo-comportamental (TCC) para o controle da insônia. Boa parte das pessoas tem insônia não por ser vítima de algum desequilíbrio químico no cérebro, mas simplesmente por estar condicionada a dormir errado. O objetivo da TCC é, por meio de mudanças de hábitos, reprogramar o cérebro para ensiná-lo a adormecer. "Os estudos mais recentes mostram que, a longo prazo, a terapia muitas vezes é mais eficaz do que os medicamentos", diz o neurologista Leonardo Goulart, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Nos Estados Unidos, desde 2005 a TCC passou a ser considerada também o tratamento-padrão para a insônia.
Lições para voltar a dormir - “Costumava acordar mais de duas vezes durante a noite e tinha dificuldade para voltar a dormir, o que comprometia o dia seguinte. Por isso, recorri aos remédios. Não acreditei que a TCC pudesse funcionar. Engolir um comprimido antes de me deitar era bem mais simples do que mudar os hábitos, mas resolvi experimentar e hoje durmo sem o remédio e, se acordo durante a noite, aprendi a pegar no sono novamente.” Thelma Frazatto, 40 anos
Quando foi criada, nos anos 60, pelo psiquiatra americano Aaron Beck, a TCC destinava-se ao tratamento de distúrbios psíquicos, em especial a ansiedade e as fobias. Para seus criadores, tais afecções, em geral, surgem da interpretação errônea do mundo concreto. Por meio de confronto e resistência, o método visa a desligar os comandos cerebrais associados aos pensamentos distorcidos. "Com a terapia, é possível reduzir as doses de remédio para dormir ou até suspender seu uso", diz a neurologista Andrea Bacelar, vice-presidente da Associação Brasileira do Sono. É o caso da carioca Regina Zany e da paulista Thelma Frazatto, cujos depoimentos estão nesta página. O tratamento dura, em média, dois meses, com encontros semanais com o terapeuta. Além de aprender técnicas de relaxamento e meditação, entre outras estratégias, o paciente é incentivado a anotar a sua rotina de dormir e acordar e a registrar as preocupações que costumam rondá-lo nas noites em claro — "aquelas coisas transtornadas" do poema de Fernando Pessoa. Diz a psicóloga Karina Haddad Mussa, do Instituto do Sono, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): "O objetivo é mostrar ao insone que ele é capaz de dormir. Isso é importante, já que grande parte dos pacientes tem a impressão de que não sabe mais o que é dormir".
Sono mais tranquilo - “É terrível ter sono e não conseguir dormir. Rolava na cama por cinco horas até dar um cochilo. Um cochilo apenas. Era uma tortura. A cabeça não parava. Problemas pequenos ficavam enormes. Cheguei a tomar uma quantidade elevada de benzodiazepínicos. A terapia me ensinou a controlar a ansiedade e hoje só preciso de doses baixas de antidepressivo para pegar no sono.” Regina Zany, 47 anos
A eficácia da TCC anti-insônia não pressupõe o abandono dos medicamentos. A terapia não é indicada, por exemplo, para quem não consegue dormir em decorrência de um quadro de apneia. Outros pacientes, por sua vez, não se adaptam ao novo método. Além disso, os remédios continuam indicados para aqueles momentos mais turbulentos, como a morte de um parente ou dificuldades financeiras, nos quais ficar sem dormir é aceitável. Também nesse campo, a medicina tem boas-novas. Foi lançada recentemente no Brasil a versão sublingual do zolpidem, um dos mais seguros e eficazes indutores do sono. Fabricada pelo laboratório EMS e vendida sob o nome comercial de Patz SL, a nova formulação permite que o remédio induza o sono em apenas nove minutos — duas vezes mais depressa que os comprimidos orais. Conclui a neurologista Dalva Poyares, da Unifesp: "Medicamentos de ação mais rápida ajudam a diminuir a angústia do paciente".
Fonte: Revista Mente e Cérebro
Disponível em:<http://veja.abril.com.br/noticia/saude/aprendendo-a-dormir >. Acesso em: 06 ago. 2012.
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