O Brasil pós-inflacionário viu nascer uma classe social que emerge junto com um novo tipo de economia. Oficinas de fundo de quintal, operadores de telemarketing, feirantes bem-sucedidos e negócios familiares geridos por pequenos empresários são estimulados pelo microcrédito e pelo auxílio estatal. O sociólogo Jessé de Souza, autor de Os batalhadores brasileiros – Nova classe média ou nova classe trabalhadora (Humanitas UFMG, 2010), estudou as adaptações às exigências de desenraizamento, ausência de identidade de classe e vínculos de pertencimento trabalhista, que nosso capitalismo flexível e expressivo tornou compulsório. Aceitando a superexploração da jornada de trabalho e estudo, o adiamento do consumo imediato e grande dose de crença em si mesma, a classe emergente formou um admirável senso de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo. Diferentemente da chamada ralé, da qual muitos faziam parte até pouco tempo atrás, a nova classe trabalhadora conseguiu criar para si um senso de futuro. Em sintonia com a tese globalizada de que todos agora somos empresários e patrões de nós mesmos, saímos diretamente da periferia do mundo para a vanguarda do capitalismo brasilianizado.
Um movimento desse tipo pede uma justificativa moral que explique o próprio sucesso de uns e o fracasso de outros tantos. Situações como essas são férteis para novos arranjos entre exigências superegoicas e disponibilidades de ideais. Transformações das formas de viver sempre trazem consigo novas maneiras de sofrer. Exemplos: a classe média americana dos anos 50 está ligada à aparição das patologias narcísicas, assim como a crença neoliberal dos anos 90 está em sintonia com a popularização da depressão e das patologias do consumo. A tese remonta à ideia, posta em circulação por Jacques Lacan, de que na primeira década do século passado, na sociedade europeia, as neuroses clássicas (histeria, neurose obsessiva, fobia) dependiam de um enfraquecimento da imagem do pai. O aprofundamento deste declínio redundou, já na psicopatologia dos anos 30, nas patologias de caráter.
No caso dos batalhadores brasileiros a religião e os laços familiars parecem ter papel importante na formação deste espírito de resiliência, que aumenta a capacidade de absorver sucessivos fracassos, sacrifícios e riscos envolvidos na empreitada de ascensão social. Ao contrário do imigrante, que se separa de seus laços comunitários iniciando uma aventura individual de conquista, os batalhadores mantêm uma dívida simbólica com o passado e com a comunidade de origem. Se para o imigrante o passado renegado vem bater à porta, como sintoma de que algo de importante foi deixado para trás, para o batalhador é o futuro que assombra como indeterminação e incerteza: “será que trouxe tudo o que precisava na mala?” ou ainda “como posso ser feliz sem para de ser um sofredor”. Os batalhadores não querem mudar de bairro, mas permanecer junto de suas origens. Paradoxo: teria sido o infortúnio original a causa da felicidade posterior? Se essa for a pergunta teremos deentender muito melhor o sentido clínico do masoquismo.
Fonte: Revista Mente e Cérebro
Disponível em:<http://www2.uol.com.br/ vivermente/noticias/o_ paradoxo_moral_do_batalhador_ brasileiro.html>. Acesso em: 02 abr. 2012.
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