"É urgente e necessária a valorização da pesquisa clínica e das ações realizadas pelos centros de referência no combate ao crack. Em especial, é importante o estabelecimento de pontes entre a comunidade e os locais de tratamento", alertou o pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) Francisco Inácio Bastos, durante a mesa final do I Seminário de Experiências da Atenção Primária em Saúde com População de Rua e I Oficina Crack e outras Drogas: Crack é o Problema?. Felix Kessler, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, lembrou ainda que usuários de crack apresentam alto índice de transtornos de conduta e transtorno de personalidade antissocial.
Francisco Inácio Bastos trouxe para o debate suas impressões sobre a pesquisa nacional sobre crack, cujo principal objetivo é conhecer o perfil dos usuários da droga no Brasil. Este estudo, do qual ele é integrante, é desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) em parceria com a Fiocruz. A pesquisa está analisando os 26 estados do país e o Distrito Federal para traçar o perfil dos usuários e a situação de disseminação da droga nas cidades de médio e pequeno porte e na zona rural. Segundo ele, ao contrário do que dizem, não existe no Brasil como um todo o fenômeno da cracolândia.
“Esta estrutura macro de centenas de pessoas em aglomerados urbanos é uma estrutura característica de locais específicos. Isso ocorre basicamente por duas razões: primeiro, por causa do adensamento urbano que existe em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, mas também por uma questão de fluxo. Essa segunda característica não é muito discutida, mas uma cracolândia exige uma grande logística de distribuição. O aporte de produtos e a regularidade de suprimentos são o que propicia esse tipo de aglomerado a existir”, explicou Francisco Inácio.
Com a pesquisa, explicou Bastos, foi possível perceber que o mercado do crack é varejista, o crime é bem menos organizado do que se supõe, e o Estado e as lideranças não estão ausentes, mas precisam ser recuperados. “As pessoas falam muito em ausência do Estado, quando, na verdade, o que existe é ausência de instâncias do Estado que sirvam de suporte social. Por isso, acredito que este modelo atual utilizado pelo Teias-Escola Manguinhos e por algumas outras iniciativas parecidas seja a única forma viável de repensar o território."
O palestrante disse ainda que, no que diz respeito à área da saúde, para mudar esta situação é necessário valorizar a pesquisa clínica e as ações de centros de referência, mas, principalmente, estabelecer pontes entre comunidade e locais de tratamento. “Ficar parado dentro dos locais de tratamento é ruim para os profissionais e nada bom para os usuários.”
Christiane Sampaio, médica do Teias-Escola Manguinhos, falou sobre sua relação com os territórios analisados e mostrou dados da Análise do contexto sociocultural dos usuários de crack no município do Rio de Janeiro, pesquisa etnográfica realizada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), da qual participou. Christiane ressaltou que a etnografia só ocorre quando, de fato, se estabelece uma relação de proximidade com os usuários e cria-se um sentimento de pertencimento ao grupo.
A pesquisa também abordou o tipo de relação que os usuários de crack estabeleceram durante a vida, como seus laços familiares, com a escola, trabalho e outros. Além disso, também foram levantados dados sobre suas práticas de uso, frequência e gastos. Em relação à saúde, o estudo buscou informações sobre o acesso aos serviços de saúde, psicológicos e de assistência social e sobre a oferta e procura de serviços especializados para tratamento relacionado ao uso de drogas. A partir dessas análises, Christiane explicou que a história de vida dessas pessoas normalmente está associada à perda de vínculos e laços familiares: quase a totalidade dos entrevistados relatou ausência ou desconhecimento da figura paterna.
Na maioria dos casos, comentou ela, a perda de vínculos vem antes da entrada no crack. “Eles já apresentavam problemas de relacionamento antes de se tornarem usuários da droga. Portanto, é preciso desmistificar a ideia de que foi o crack que jogou esses jovens na rua. A droga foi apenas mais um agravo, mais uma vulnerabilidade que entrou em suas vidas. Além disso, contrariando o senso comum, os usuários de crack entrevistados se mostraram acessíveis, sedentos de atenção e carinho e não demonstram agressividade”, compartilhou ela.
Outra questão relevante se refere à evasão escolar. Christiane apresentou que o abandono escolar pelos usuários de drogas está diretamente ligado à intolerância e ao preconceito tanto dos profissionais da educação como dos amigos da turma. “Esses jovens tinham vergonha de frequentar esses lugares, pois eram alvo de comentários, deboches e repressões. Pela voz dos usuários, a entidade escola demonstrou grande dificuldade e falta de preparo para lidar com a adversidade. A falta de diálogo foi uma tônica nos discursos.”
O médico e diretor do Centro de Pesquisas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e chefe da Unidade de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Feliz Kessler, abordou questões clínicas vinculadas à psiquiatria e a outras áreas articuladas a ela. Na psiquiatria, explicou, costuma-se falar que as doenças mentais normalmente têm fundo biopsicossocial, umas mais voltadas para um lado, outras para outro. Porém, os problemas psicossociais afetam extremamente tanto a parte biológica como a parte psíquica. “Temos visto que a grande questão dos usuários do crack é que são pacientes com problemas psíquicos e sociais graves. Com o uso das drogas, desenvolvem também problemas biológicos graves. Então, é uma doença grave nas três esferas, o que complica o trabalho do profissional de saúde.”
Ele ressaltou que estamos engatinhando no tratamento dessa doença crônica grave, que é o crack. Também mostrou dados de um estudo realizado em quatro capitais que envolveu 750 pacientes de ambulatório e de internações. “Entre os principais dados, principalmente do ponto de vista psiquiátrico, percebemos que, quando comparado aos usuários de cocaína, álcool e maconha, os usuários de crack apresentam um alto índice de transtornos de conduta e de personalidade antissocial. Numa comparação entre 293 usuários decrack, 126 de cocaína e 319 de álcool e maconha, vimos que a idade entre os usuários decrack estava entre 30 e 31 anos, dos quais a maioria era do sexo masculino. Já os alcoolistas apresentam idade média de 42 anos. A porcentagem de usuários de crack que apresentam transtornos psiquiátricos e sintomas associados ao uso da droga comparada aos outros usuários estudados também diz algo: 47% apresentaram episódios depressivos; 47%, episódios de risco de suicídio; e 30%, episódios maníacos”, mostrou Felix.
Para finalizar, Felix alertou que estes índices são muito altos. E o mais grave deles se refere ao transtorno de personalidade antissocial e de conduta antes dos 15 anos e antes do uso do crack. “Portanto, o problema de conduta está extremamente associado ao crack. O número fica em 25% de usuários desta droga comparado com 9% dos outros grupos. Já na população em geral, o índice gira em torno de 1 a 2% deste tipo de transtorno. Isso mostra que estes usuários são pessoas que sofreram muito na infância, tiveram problemas sociais e, com isso, acabam desenvolvendo problemas de conduta que refletem na busca por uma droga que já se sabe que tem alto poder destrutivo”.
A psicóloga e diretora do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas Mané Garrincha (Caps-AD), Marise Ramôa, última palestrante da mesa <i>Usuários de crack: perfil, estudos e cuidados</i> fez um relato sobre a sua experiência nesta área e analisou que as políticas de governo não são resolutivas, pois são pautadas na guerra antidrogas, na ‘limpeza’ urbana com a retirada desses usuários das ruas e na violência com os próprios usuários. Segundo ela, essas políticas não tem, de fato, a dimensão do cuidado.
“Temos vivido uma direção muito mais repressora, com o recolhimento compulsória de crianças, adolescentes e adultos, a destruição de bens dessas pessoas, como documentos e roupas, entre outros. O grande risco dessas políticas repressoras é que não temos como colocar a substância como inimiga. Isso vai gerar uma direção para os usuários, levando a violência a eles”.
Fonte: Informe ENSP