Igor Lins Lemos é psicoterapeuta cognitivo-comportamental, tutor da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) e doutorando em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento (UFPE). É palestrante e pesquisador das dependências tecnológicas. Contato: igorlemos87@hotmail. com
Indubitavelmente, a Internet revolucionou os modelos de comunicação, permitindo também que novas formas de entretenimento fossem desenvolvidas, assim como o acesso às informações dos mais variados conteúdos. A World Wide Web remodelou também os antigos padrões de relacionamentos, seja por meio das redes sociais, dos fóruns ou dos programas de interação em tempo real, disseminados também nos celulares. Não apenas essas modificações foram provocadas pelo avanço da cibercultura como também o acesso à saúde foi reformulado para novos padrões. Atualmente, é possível, por exemplo, verificar resultados de exames de sangue no endereço eletrônico do laboratório ou acessar sites sobre saúde mental e de planos de saúde sem sair de casa.
Apesar dos diversos benefícios da Internet para a saúde humana, outra manifestação psicopatológica (vinculada ao campo eletrônico) vem sendo discutida, além da dependência de jogos eletrônicos, Internet, cibersexo e celular: a cibercondria. O nome é um neologismo dos termos ciber e hipocondria. Apesar de parecer ofensivo, pesquisadores revelam que a intenção é que a etimologia da cibercondria não seja compreendida como sendo pejorativa.
A Internet revolucionou os modelos de comunicação, permitindo também que novas formas de entretenimento fossem desenvolvidas, assim como o acesso às informações dos mais variados conteúdos
O que é hipocondria?
Para uma compreensão mais acurada da cibercondria é imprescindível ressaltar o que é a hipocondria. De acordo com o DSM-IV, a hipocondria é uma preocupação associada ao medo ou à ideia de sofrer de uma enfermidade, com base em uma interpretação errônea de sintomas ou funções corporais, em que o indivíduo teme sofrer de uma doença grave, apesar de avaliações e garantias médicas apropriadas. No DSM-IV, a hipocondria estava inclusa no grupo dos transtornos somatoformes, que são caracterizados pela presença de sintomas físicos que sugerem uma condição médica geral, mas que não são explicados por uma condição clínica, por efeito de substâncias ou por outro transtorno mental. A hipocondria distinguia-se dos demais transtornos somatoformes pelo fato de a ideia de ter uma doença grave ocorrer não somente no curso do transtorno de somatização (DIB, VALENÇA e NARDI, 2006).
Para atingir os critérios da somatic symptom disorder, os pacientes devem ter um ou mais sintomas somáticos, com os quais há excessiva preocupação
Para atingir os critérios da somatic symptom disorder, os pacientes devem ter um ou mais sintomas somáticos com os quais eles são excessivamente preocupados. Esses medos e comportamentos corroboram em um estresse e uma disfunção que são significativos para esses sujeitos, além de usarem frequentemente serviços de saúde nos quais raramente eles são reassegurados. Em relação à illness anxiety disorder, o paciente pode ou não ter uma condição médica, mas apresenta um aumento das sensações corporais e é intensamente ansioso no que se refere à possibilidade de ter uma doença sem diagnóstico, ou devota um tempo excessivo em relação às preocupações com sua saúde, frequentemente buscando informações, obsessivamente, sobre sua possível condição médica.
De acordo com grupos de especialistas, críticas podem ser feitas a estas novas classificações, já que com tão poucos critérios possivelmente haveria um aumento epidemiológico significativo. Entretanto, o que ocorrerá, de acordo com o novo manual, é o oposto, após 20 anos de reformulações sobre a hipocondria: sujeitos com queixas de saúde que sejam coerentes com seu estado clínico não mais serão diagnosticados, de acordo com o novo critério do DSM-V.
A procura de informações sobre sintomas e doenças na Internet é comum e, muitas vezes, serve a propósitos úteis
Fantasia ou realidade?
Maria saía da faculdade em uma sexta-feira, tarde da noite, e, caminhando em direção ao ponto de ônibus, sentiu uma forte dor de cabeça repentina. Pensou, inicialmente, que não seria nada de mais, "apenas um sinal de que a semana havia sido longa e cansativa". A dor foi intensificando no caminho para casa e, ao chegar a sua residência, ela se lembrou de que não poderia consultar um médico naquele horário, apenas em emergências de hospitais. Pensamentos catastróficos começaram a surgir: "e se isso for uma doença séria?", "e se eu morrer?", "isso nunca aconteceu com tanta intensidade antes, pode ser um sinal muito ruim".
Apesar de ser uma ficção, este fenômeno ocorre com muitas pessoas ao redor do mundo, que, logo imediatamente a mudanças corporais, recorrem à Internet para saber como resolver o seu problema; e esta queixa se expande a muitas outras, desde dores no peito e menstruação atrasada até dores estomacais. No caso de Maria, a Internet apenas aumentou a sua ansiedade. Será, então, que Maria sofre de cibercondria?
Apesar dos diversos benefícios da Internet para a saúde humana, outra manifestação psicopatológica (vinculada ao campo eletrônico) vem sendo discutida, além da dependência de jogos eletrônicos, Internet, cibersexo: a cibercondria
Novo fenômeno psiquiátrico?
A procura de informações sobre sintomas e doenças na Internet é comum e, muitas vezes, serve a propósitos úteis. De acordo com Aiken e Kirwan (2012), a Internet é um valioso recurso na busca de informações médicas e continuará sendo por muitos anos. Porém a web tem, em paralelo, o poder de aumentar a ansiedade dos indivíduos que não tiveram treinamento médico quando estes buscam diagnósticos em websites. Dessa forma, atualmente, diversas pessoas que são excessivamente angustiadas ou muito preocupadas com a sua saúde realizam pesquisas constantes na Internet e apenas se tornam mais ansiosas ou amedrontadas: este padrão é definido como cibercondria, termo que surgiu em meados de 2000.
PARA SABER MAIS
Sinais condizentes com um "cibercondríaco"
a) foca no pior cenário possível para o seu problema, sem outras explicações mais amenas possíveis (uma dor de cabeça, que pode ser explicada de várias formas, confunde-se com um tumor incurável);
b) não se recorda da sua última condição médica que não foi consultada na Internet;
c) se sente pior quando interrompe o uso do computador/celular (sintoma semelhante à abstinência, condizente com as dependências tecnológicas);
d) não é 100% seguro em relação aos seus sintomas;
e) os endereços eletrônicos nos seus "favoritos" são de websites médicos, em vez de sites de esportes, revistas ou portais;
f) esta condição de preocupação recorrente domina a vida do indivíduo, interferindo significativamente na sua qualidade de vida.
O termo "saúde" é considerado o segundo mais procurado na Internet. De acordo com o Office for National Statistics (2011), nos últimos três meses, 42% das famílias do Reino Unido acessaram a Internet em busca por informações de saúde
Ansiedade e cibercondria
Um estudo realizado por Muse et al. (2012) questionou se a cibercondria é um novo fenômeno ou apenas uma classificação equivocada. Por meio de avaliação da ansiedade em um grupo de 82 participantes, 46 deles apresentaram alta ansiedade e 36 indivíduos revelaram ter baixa ansiedade. Os pesquisadores estabeleceram uma hipótese de que quanto maior fosse a ansiedade desses indivíduos, maior seria o comportamento de busca por informações relacionadas à saúde na Internet. Os resultados responderam positivamente a essa indagação. Os participantes mais ansiosos buscavam esse tipo de informação na rede com mais frequência, passavam um tempo maior nesse tipo de busca e consideravam que essa era uma atividade que provocava ainda mais ansiedade. Esse grupo ainda recorria a outroswebsites sobre condições médicas que nunca foram diagnosticadas, liam constantemente sobre experiências de adoecimento de terceiros e participavam ativamente de fóruns relacionados às patologias. Os autores apontam que a busca de informações na rede pode, em vez de beneficiar esses pacientes muito ansiosos, potencializar a ansiedade em relação à própria saúde.
Medição da cibercondria: Uma das poucas escalas existentes para a mensuração sintomatológica da cibercondria é a cyberchondria severity scale (CSS). O instrumento foi validado por meio de uma amostra de 208 estudantes, sendo 64% do sexo feminino. O instrumento apresenta cinco fatores: "compulsão", "aflição", "excessos", "busca de reasseguramento" e "desconfiança em relação ao profissional médico". McElroy e Shevlin (2014), os autores responsáveis pela escala, apontaram que esta apresentou boas propriedades psicométricas, com alto nível de consistência interna. Dessa forma, a CCS pode se tornar uma opção para uma variedade de pesquisas futuras em relação à cibercondria.Nos Estados Unidos, websites como o WebMD e MayoClinic podem indicar valiosas informações sobre cuidados com a saúde para usuários da Internet. Nestes endereços, os consumidores conseguem saber se os seus sintomas podem indicar uma condição médica séria ou mesmo medos sem fundamentos. Apesar disso, a população geral tem como preferência a busca de informação sobre sua própria saúde em outros endereços, como o Google, o Yahoo! e a Microsoft.
Uma pesquisa mostrou que os participantes mais ansiosos buscavam em sites informações sobre possíveis sintomas, liam constantemente sobre experiências de adoecimento de terceiros e participavam ativamente em fóruns sobre patologias
Será que uma busca na Internet sobre sua própria saúde é uma atitude negativa? De acordo com White e Horvitz (2009), se essa pesquisa for feita de maneira aleatória, poderá resultar em páginas que tenham conteúdos alarmantes sobre sérios tipos de adoecimentos sem, no entanto, assegurar o usuário de que ele possa, na realidade, apresentar outro tipo de condição médica ou mesmo nenhum tipo de adoecimento. Entretanto, se acometido pela cibercondria, o usuário poderá não considerar essa possibilidade.
A busca por informações torna-se inapropriada quando o objetivo é um procedimento diagnóstico, pois o usuário pode interpretar de maneira distorcida a sua leitura, supervalorizando sintomas que não são indicativos de condições médicas ou mesmo menosprezando sinais de doenças.
White e Horvitz (2009) realizaram uma pesquisa com 515 indivíduos que iriam revelar as suas experiências sobre como investigam seus sintomas e suas preocupações médicas (como o autodiagnóstico) na Internet.
Os resultados demonstraram que, em geral, a população estudada apresentava um baixo índice de ansiedade com a saúde, porém preocupações com a saúde e a busca dessa informação na Internet ocorriam sempre ou com muita frequência em um de cada cinco participantes. Aproximadamente dois entre cada cinco indivíduos mencionaram que a interação com websites de saúde aumentava sua ansiedade e, por fim, metade dos participantes sugere que esse comportamento, na realidade, diminui a sua ansiedade. Os pesquisadores ainda mencionaram que predisposição à ansiedade (vulnerabilidade mental) pode contribuir para uma busca excessiva de informações sobre a sua própria saúde na Internet.
A busca por informações torna-se inapropriada quando o objetivo é um procedimento diagnóstico que pode gerar interpretações distorcidas
Intolerância à incerteza
Fergus (2013) realizou um estudo com 512 participantes nos Estados Unidos. A média de idade foi de 33,4 anos, sendo 55,3% do sexo feminino. O objetivo do seu trabalho foi verificar o efeito da intolerância à incerteza na relação entre a frequência de buscas por informações médicas da web e a ansiedade com a saúde. Para esta pesquisa foram aplicados os seguintes instrumentos: a Intolerance of Uncertainty Scale - 12 item Version (IUS-12), a Short Health Anxiety Inventory (SHAI) e a Positive and Negative Affect Schedule (PANAS). Além disso, foram considerados outros dois pontos: a relação entre a ansiedade com a saúde como um resultado de buscas por informações médicas na Internet e a frequência com que esse usuário busca esse serviço.
Uma consultoria australiana mencionou que quase 89% dos médicos naquele país tiveram pacientes que trouxeram informações da Internet
Uma estratégia possível, segundo Fergus (2013), para diminuir esse tipo de intolerância, seria a aplicação de estratégias cognitivas para aumentar a tolerância à incerteza. O indivíduo passaria a aprender a aceitar que uma explicação definitiva para sensações corporais ambíguas não é possível. A exposição a situações que evitem os comportamentos de segurança (checar oswebsites) é outra estratégia.
Diversos pacientes já trouxeram diagnósticos para o setting clínico que foram cuidadosamente encontrados com o "Dr. Google": TDAH, TOC, depressão, transtornos de personalidade. A lista é extensa
Prática clínica
Uma consultoria australiana mencionou que quase 89% dos médicos na Austrália já tiveram pacientes que trouxeram, ao seu consultório, informações da Internet sobre o seu estado clínico. Como psicoterapeuta cognitivo-comportamental, enfocando em meus atendimentos o campo das dependências tecnológicas, posso assegurar que essa prática não é exclusiva com profissionais da Medicina. Diversos pacientes já trouxeram diagnósticos para o setting clínico que foram cuidadosamente encontrados com o "Dr. Google": TDAH, TOC, depressão, transtornos de personalidade. A lista é extensa. O dado de minha prática em consultório revelou o oposto: a maior parte desses pacientes cometeu equívocos com as informações que foram levadas às sessões. Isso significa que é incorreto informar-se em relação ao seu problema? De forma alguma. A psicoeducação é uma das estratégias mais importantes para que o paciente conheça o seu problema e saiba como pode ser ajudado. Entretanto esse tipo de direcionamento só pode ser feito por um profissional da área da saúde mental, seja ele um psicólogo ou psiquiatra.
Infelizmente, ainda existe um quantitativo assustador de indivíduos que ainda não compreendem que as novas manifestações tecnológicas são reais. O processo de psicoeducação sobre os transtornos vinculados ao mundo virtual é necessário, vide as reportagens anteriores na Psique sobre a dependência de jogos eletrônicos, cibersexo e cyberslacking. De acordo com Lemos e Santana (2012), o prognóstico em relação a esses transtornos não é positivo, tendo em vista que a literatura científica prevê que um quantitativo cada vez maior seja acometido por esses modelos psicopatológicos.
Infelizmente, ainda existe um quantitativo assustador de sujeitos que ainda não compreendem que as novas manifestações tecnológicas são reais
O principal objetivo desse artigo, além de ressaltar a novidade e a importância desse tema, não é sustentar a ideia de que, a partir de agora, os sintomas sejam negligenciados ou esquecidos e a Internet se torne uma inimiga da saúde. O foco é ressaltar que buscar imediatamente uma "resposta" de um sintoma na Internet pode aumentar a sua ansiedade. Dessa forma, é necessária uma reflexão para verificar se esse artifício está ajudando-o ou, na verdade, afetando negativamente a sua qualidade de vida.
REFERÊNCIAS
AIKEN, M.; KIRWAN, G. Prognoses for diagnoses: medical search online and "cyberchondria". BMC Proceedings, v.6, 2012.
DIB, M.; VALENCA, A.M.; NARDI, A.E. Transtorno de pânico e hipocondria. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v.55, n.1, 2006.
FERGUS. T.A. Cyberchondria and intolerance of uncertainty: examining when individuals experience health anxiety in response to internet searches for medical information. Cyberpsychology, Behavior, and Social Networking, v.16, n.10, 2013.
LEMOS, I.L.; SANTANA, S.M. Dependência de jogos eletrônicos: a possibilidade de um novo diagnóstico psiquiátrico.Revista de Psiquiatria Clínica, v.39, n.1, 2012.
McELROY E.; SHEVLIN, M. The development and initial validation of the cyberchondria severity scale (CSS). Journal of Anxiety Disorders, v.28, n.2, 2014.
MUSE K.; McMANUS F.; LEUNG, C.; MEGHREBLIAN B.; WILLIAMS J.M. Cyberchondriasis: fact or fiction? A preliminary examination of the relationship between health anxiety and searching for health information on the Internet. Journal of Anxiety Disorders, v.26, n.1, 2012.
WHITE R.W.; HORVITZ, E. Experiences with web search on medical concerns and self diagnosis. AMIA Annual Symposium Proceedings, 2009.
Fonte: Revista Psique
Disponível em: http://portalcienciaevida. uol.com.br/esps/edicoes/102/ artigo319272-1.asp?o=r. Acesso em: 25 jul. 2014
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