Powered By Blogger

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Psicopatologia: Um desafio à mesa

Anorexia e bulimia são algumas das principais patologias causadas pelos chamados transtornos alimentares, que exigem tratamentos multidisciplinares, reunindo abordagens de Medicina, Psicologia e Psicanálise

ShutterstockAs alterações relacionadas à alimentação se consolidam como um significativo problema, que pode ocorrer em consequência de fatores metabólicos ou psíquicos. Essas disfunções ganham, cada vez mais, relevância na mídia, em função do crescente número de casos de adolescentes que convivem com sérios problemas de saúde, inclusive com registros de mortes. No entanto, os distúrbios podem alcançar outras faixas etárias, transformando-se em um grande desafio para os profissionais de saúde.

Desde há muito venho me interessando pelas diversas patologias que compõem os assim denominados transtornos alimentares. Tanto a condução do tratamento como o seu prognóstico encontram-se em terreno bastante reservado. Sabemos que essas graves patologias possuem um percurso histórico dentro das mais variadas áreas, como Medicina, Psicologia e Psicanálise, entre outras. Assim sendo, pretendemos, sem nos estender demais, fazer uma breve retrospectiva histórica, abarcando as principais visões teóricas a respeito.

Os primeiros estudos parecem datar de 1689, com Richard Morton, o qual publica, em latim, um trabalho intitulado Tisiologia sobre a doença da consunção, situando os seus sintomas mais relevantes, segundo ele: perda do apetite; amenorreia; emagrecimento importante. Para esse autor, as causas deveriam ser buscadas no sistema nervoso. Em 1789, Naudeau, na França, descreveria "uma doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos". Mas, na verdade, é em Pinel, no início do século XIX, que encontraremos uma verdadeira reflexão sobre a conduta alimentar e suas idiossincrasias. Segundo ele, tratava-se de uma "neurose das funções nutritivas", realizando uma referência direta à anorexia e à bulimia.

Um estudo mais amplo das patologias da conduta alimentar revelou uma ligação da anorexia com a bulimia, como dois tempos alternantes de uma mesma patologia

Vale salientar, como item importantíssimo, que, quando nos referimos a patologias alimentares, devemos necessariamente levar em consideração as dimensões social e cultural onde elas ocorrem: a obra, o autor e a sua época.

A título apenas de exemplo, conta-se que no antigo Japão o costume era jejuar, por vezes até a morte, contra o inimigo, no intuito de desonrá-lo.

Um nome extremamente relevante em relação às patologias alimentares é o de Lasègue, na França, o qual inicialmente situa a anorexia no campo da histeria. Obviamente, ao longo da História, sempre houve anoréxicas, mas pode-se dizer que elas só obtiveram relevância pública por intermédio dos trabalhos de Lasègue, os quais foram verdadeiramente um evento no campo da Medicina. Na conduta anoréxica, assistiríamos um prazer ou um gozo como força fundamental na organização psíquica. A anoréxica é toda poderosa em sua anorexia. O que nos leva a tecer algumas reflexões à luz do conceito de narcisismo:

Aquele que se pretende isento de necessidades fisiológicas como todos os mortais, seguramente está pautado, entre outras, na fantasia de ser Deus;

- Na relação existente com a mãe, não se trataria aqui de uma mãe fálica, onde a anoréxica, para existir, teria que capitular do próprio desejo?;
- Como estudiosos da teoria psicanalítica, entendemos que o falo nada conta e sim quem é o seu detentor;
Sabemos também que, além do corpo real, existe o corpo erógeno, detentor das zonas erógenas. Prescindir de qualquer erotização em relação à presença de outro mantém a anoréxica numa posição autoerótica;
- O problema, quanto ao prognóstico em análise, deve-se, em termos kleinianos, à dificuldade de internalização do analista, como um objeto bom, o qual fantasmaticamente também deverá ser excretado num movimento bulímico posterior.


Enfim, chegamos a J.-M. Charcot, o qual inaugura um método de "isolamento terapêutico", objetivando o ganho de peso. É necessário encerrar, conter, conservar no interior.
Freud, no manuscrito G, ressalta a vinculação entre a anorexia e a depressão. A doente perde o apetite alimentar, juntamente com uma perda da libido. Dessa forma, diríamos que o recalque incidiria no erotismo oral. A zona bucolabial, intensamente erotizada, através de uma inversão, transforma- se numa repulsa alimentar.

Acrescentaremos a contribuição de Jacques Lacan, segundo o qual a necessidade visa o objeto e se satisfaz com ele. A dificuldade é que essa necessidade nunca ocorre senão in abstracto, fora de sua formulação através da linguagem. "A demanda é demanda de uma presença ou mesmo de uma ausência. Antes de tudo, trata-se de uma demanda de amor." Um estudo mais amplo das patologias da conduta alimentar revelou uma ligação da anorexia com a bulimia, como dois tempos alternantes de uma mesma patologia. Por enquanto, poderíamos depreender que a bulimia é o gozo ao mesmo tempo desejado e violentamente rejeitado pela anoréxica. Atualmente, a anorexia não mais se encontra vinculada à histeria, existindo como uma problemática autônoma.

Shutterstock
Sigmund Freud foi o primeiro a relacionar a anorexia e a depressão, ressaltando que a doente perde o apetite e, também, a libido, investindo seu recalque no erotismo oral

Freud, no manuscrito G, ressalta a vinculação entre a anorexia e a depressão. A doente perde o apetite alimentar, juntamente com uma perda da libido. Dessa forma, diríamos que o recalque incidiria no erotismo oral. A zona bucolabial, intensamente erotizada, através de uma inversão, transforma- se numa repulsa alimentar.

Acrescentaremos a contribuição de Jacques Lacan, segundo o qual a necessidade visa o objeto e se satisfaz com ele. A dificuldade é que essa necessidade nunca ocorre senão in abstracto, fora de sua formulação através da linguagem. "A demanda é demanda de uma presença ou mesmo de uma ausência. Antes de tudo, trata-se de uma demanda de amor." Um estudo mais amplo das patologias da conduta alimentar revelou uma ligação da anorexia com a bulimia, como dois tempos alternantes de uma mesma patologia. Por enquanto, poderíamos depreender que a bulimia é o gozo ao mesmo tempo desejado e violentamente rejeitado pela anoréxica. Atualmente, a anorexia não mais se encontra vinculada à histeria, existindo como uma problemática autônoma.

Jean Paul Valabrega, em 1967, nos diz que a anorexia se situa no cruzamento entre a ordem neurótica, psicótica, psicossomática e perversa.

Destaca-se, a partir da clínica psicanalítica, no que tange à patologia referente à anorexia, uma dimensão passional da relação da anoréxica com a mãe. B. Brusset a define assim: "A mãe é ao mesmo tempo indispensável e inaceitável". "Ela representa tudo o que me causa horror e, ao mesmo tempo, não posso dispensá-la, cabe a ela responder, compreender, espero tudo dela, que ela seja Deus para mim" (Bidaud, 1998).

Como exemplo, ele cita uma paciente anoréxica referindo-se à mãe: "Ela fica me olhando, ou me ajuda, por exemplo, a esfregar as costas. Também pode tomar banho comigo. A intrusão sedutora, como um 'olho indecente', vem da ausência de limites do olhar materno, que localiza a filha no lugar de um objeto incestuoso".

Éric Bidaud, estudioso dos distúrbios da conduta alimentar, nos diz literalmente: "A anoréxica, por uma recusa obstinada da alimentação, por uma luta sem perdão contra a necessidade, afirma, desprezando a morte, a soberania de seu desejo, desafiando todos os limites, chegando a negar o seu corpo, inclusive. Fugindo de todo prazer carnal, ela aspira ao ser. Tal como uma mística, ela goza numa transgressão sempre relançada na expectativa de se perder, de se abolir como sujeito. Ela oferece ao olhar o espetáculo insuportável de um corpo descarnado, esquelético, que presentifica a morte. Ressalta o parentesco existente com exercícios espirituais da ascese e do jejum, práticas religiosas fundamentadas na exigência de purificação e do apelo ao sagrado".

Bidaud afirma que "o alimento, o corpo e a fertilidade, como elementos fundantes da feminilidade, são personagens centrais de uma guerra travada no interior das mentes

Apenas como citação, trazemos à baila a vigorexia ou transtorno dismórfico muscular. Trata-se de uma patologia psicológica que revela uma insatisfação constante com o próprio corpo, afetando principalmente homens, levando-os à prática excessiva de exercícios físicos. No que tange ao culto ao corpo assemelha-se à anorexia.

Atualmente, podemos verificar toda uma pressão das mídias em busca do corpo considerado perfeito. Importante ressaltar que isso deve ser obtido a qualquer preço. Verifica-se, como ouvi certa vez, no dizer de uma crítica de moda, que as modelos não passam de "cabides para as roupas". Sabemos que, ao longo da História, os padrões físicos e de sensualidade têm mudado de acordo com a época vigente.

Shutterstock
Charles Lasègue
Nascido em Paris, na França, em 1816, Charles Lasègue se formou em Psiquiatria sob a orientação de Jean-Pierre Falret. Era conhecido pela precisão de suas análises clínicas. Foi autor de De l'Anorexie Hystérique, em 1873, publicação que se mostrou um dos marcos fundamentais do conhecimento psicopatológico a respeito da anorexia mental. Também foi responsável por importantes trabalhos sobre alcoolismo.

PARA SABER MAIS
EFEITOS E CONSEQUÊNCIAS DA ANOREXIA
Uma das patologias mais relevantes relacionadas aos distúrbios de alimentação é a anorexia nervosa. Ela causa inúmeros efeitos e consequências à saúde e se torna mais prevalente e grave com o passar dos anos. Existem alguns indicadores que confirmam o diagnóstico. Entre eles estão os seguintes: há ocorrência de alterações no equilíbrio hormonal nas mulheres de todas as idades. Para as que não chegaram à menopausa, a anorexia tem a capacidade de interromper completamente o ciclo menstrual normal.

As consequências da doença são inúmeras. Muitas pessoas anoréxicas ficam estressadas com facilidade, resultado da nutrição inadequada, o que faz com que o cérebro e o restante do corpo lutem pra obter energia. E se uma pessoa estiver em jejum, o fato vai afetar sobremaneira seus níveis de energia, pois as calorias dos alimentos fornecem combustível para as células funcionarem de maneira correta.

A ansiedade também pode surgir nesses casos, pois quem sofre do problema, geralmente, pensa em evitar determinadas situações de sociabilização, como aquelas em que existam reuniões que tenham qualquer relação com comida, ou seja, jantares, casamentos, encontros em bares etc. Outras consequências no organismo são osteoporose, redução do ritmo cardíaco, baixa pressão arterial, ritmos cardíacos irregulares e insuficiência cardíaca severa. A anorexia também pode surgir em conjunto com outros problemas psiquiátricos.

Para Bidaud, anorexias e bulimias são perturbações paradoxais da alimentação que se revezam no                                          psiquismo,especialmente de jovens do sexo feminino

Éric Bidaud compreende as anorexias e bulimias como se constituindo em perturbações paradoxais da alimentação que, de modo incoerente e mórbido, se revezam no psiquismo, especialmente de jovens do sexo feminino. Os atos de comer e não comer ficam tensionados, pois os alimentos recusados, temidos e expurgados, constituem-se como objeto da paixão dessas jovens, "derivando uma relação apaixonada entre elas e o alimento" (Bidaud, 1998). No mesmo ano, Bidaud afirma que "o alimento, o corpo e a fertilidade, como elementos fundantes da feminilidade, são personagens centrais de uma guerra travada no interior de mentes de mães e filhas assustadas e perplexas diante do inominável que eclode de emoções impactantes, ambivalentes e antagônicas que permeiam esses quadros o tempo todo. Mãe e filha vivendo uma grande paixão se tornam dependentes e paradoxalmente sentem um horror a essa dependência que nutre a relação, aprisionadas em um corpo-cárcere, ambas buscando eternamente uma completude para um vazio que sentem nunca ser eficientemente preenchido, tomadas por uma sensação de constante débito, uma tristeza sem nome, uma vida que beira a morte".

Shutterstock
A vigorexia, conhecida como transtorno dismórfico muscular, afeta principalmente os homens, fazendo com que eles pratiquem exercícios em exagero

Dores crônicas

Penso ser interessante, aqui, realizarmos uma pequena pausa no intuito de citarmos aquelas pessoas que se queixam de dores crônicas, muitas vezes denominadas de fibromialgias. Sabemos que existem em várias instituições ligadas à saúde, departamentos específicos e voltados para a assim denominada dor crônica. Na própria Universidade de São Paulo - USP existe o núcleo APOIAR, que faz a triagem bem como o encaminhamento de pacientes oriundos da Odontologia, dentre outras especialidades, para a Psicoterapia. 

Em minha experiência como supervisor de colegas que atendem esses pacientes, posso notar claramente a dificuldade que encontram na condução do tratamento, seja psicoterápico ou mesmo psicanalítico. À guisa de ilustração, uma paciente que procura o psicoterapeuta em virtude de uma dor crônica bucomaxilar, por exemplo, tem uma extremada dificuldade de representar essa dor em termos psíquicos, ou seja, apresenta uma enorme dificuldade de psicologizar o seu sintoma. Assim, o único problema na vida dessa paciente e seu único objetivo é livrar-se dessa dor crônica que muitas vezes a acompanha por anos a fio. A dificuldade de se "despregar" do mal que lhe atinge o corpo, uma vez que trata a dor dentro de um aspecto de concretude, impossibilitando qualquer tipo de simbolização.

Shutterstock
É comum encontrar garotas com transtornos alimentares no universo das modelos, consideradas, com frequência, apenas "cabides para as roupas"

No caso das anoréxicas, geralmente o afeto é vivido na mãe, e a pessoa não o sente como sendo dela própria, mas como sendo da mãe

Aqui ficam explicadas as enormes dificuldades, desde Freud nos seus Estudos sobre a Histeria, em relação aos problemas referentes às dimensões corporais de seus pacientes, sobretudo nas pacientes histéricas. Num simples, mas clinicamente complexo caso atendido por Freud, ele nos conta que a paciente lhe dizia que "não fosse a dor no joelho, local da queixa, a paciente não expressava nenhuma indicação de quem sente dor, mas sim, contrariamente, desenhava-se no seu rosto uma expressão quase de prazer. Nos Estudos sobre a Histeria, o fenômeno descrito justificava-se pelo mecanismo da conversão, onde uma conflitiva psíquica encontrava caminho de descarga no corpo da paciente".

Nas patologias referentes aos transtornos alimentares, a questão do corpo é de fundamental relevância. Tratar-se-ia de conflitos de ordem psíquica, que encontram algum tipo de expressividade por intermédio do corpo. Freud, ao notar o fenômeno exposto acima, referia-se à "transformação de zonas erógenas em zonas denominadas como histerógenas".

Freud propunha pensar o fenômeno da histeria em termos da existência de "forças opostas, ou seja, do desejo inconsciente sexual e à proibição à sua concretização". Por meio de suas pesquisas, Freud empreendeu uma mudança da técnica hipnótica para a técnica da cura pela fala, a assim denominada talking cure. Esse foi inauguralmente o método da associação livre.

Cássia A. Nuevo B. Bruno, organizadora do livro Transtornos Alimentares, quando se refere à simbiose, diz que "para que o pensamento aconteça, faz-se necessária a ausência do objeto representado, a substituição do afeto pela representação. A dificuldade da mente mais regredida é exatamente esta - o distanciamento e a diferenciação entre eu-outro -, pois é daí que surge o medo do aniquilamento, da desintegração, a necessidade do não afeto e a necessidade de viver o afeto no outro.

Interioridade

No caso das anoréxicas, geralmente, o afeto é vivido na mãe, e a pessoa não o sente como sendo dela própria, mas como sendo da mãe. Contrariamente, também pode ocorrer que a mãe viva o afeto na filha quando a filha é vista como sendo a própria mãe, ou como uma parte importante de si e não como o outro, como a filha que tem uma existência própria. Nestas circunstâncias ocorre uma invasão total da interioridade da filha".

Diremos que entre a anoréxica e o alimento existe uma relação de paixão, o que, em última instância, quer dizer que o que está no centro da experiência anoréxica é a importância da tensão entre a necessidade e a insistente recusa em apaziguá-la. Continuando a nos apoiar nos estudos de Éric Bidaud, entendemos que a relação da anoréxica com o objeto alimento define um objeto ao mesmo tempo idolatrado e odiado, puro e impuro. A tensão torna ainda o objeto mais presente, sendo que o objeto alimento se torna a causa de tudo para a anoréxica, a qual se encontra presa nessa relação de paixão. Na luta ativa contra a vontade, aumentada pela privação, encontramos os dados principais de um clima de tentação, que se equipara à tentação do sujeito religioso. H. Brunch faz uma observação bastante ilustrativa: "Ela estava num terrível estado de excitação a propósito da ideia de comer que a obcecava e que aparecia sob todas as formas, todas as espécies e todos os tamanhos". Nos dizeres da paciente anoréxica, teríamos: "Às vezes escuto vozes ou sinto coisas em minha cabeça, e às vezes tenho visões estranhas e assustadoras..." As vozes pareciam estar em conflito, umas dizendo "Coma!, coma!" e as outras dizendo "Não coma!, não coma!". Quando a anoréxica cede aos seus desejos irreprimíveis de comer, o faz com vergonha e terror.

Nas patologias referentes aos transtornos alimentares, a questão do corpo é de fundamental relevância. Tratar-se-ia de conflitos de ordem psíquica

Se nos perguntarmos em termos psicanalíticos, sobretudo numa orientação teórica lacaniana, como poderíamos situar o "gozo da anoréxica"? Aqui, diremos que o abandono e o afastamento progressivo do objeto alimento fomentam um "masoquismo mortífero", o qual deverá ser entendido somente em termos de um paradoxo: a diminuição do investimento no objeto é sempre acompanhada por um "refluxo narcísico", ocasionando a exclusividade de uma preocupação consigo mesma por parte da paciente anoréxica. Fenomenologicamente, na clínica, temos a mais nítida impressão de que a anoréxica ameaça a sua própria vida, mas isso não ocorre por falta de interesse pela sua conservação, mas sim, ao contrário, porque ela só faz ocupar-se disso e se vê na total impossibilidade de estabelecer qualquer interesse por qualquer outra coisa. Dessa forma, podemos dizer que o paradoxo da anorexia encontra-se ligado a essa preocupação exclusiva com o objeto da necessidade. Daí decorre o caráter enigmático dessa patologia: "o investimento masoquista da excitação e o abandono da satisfação objetal provocam o prazer de uma dor, buscada e mantida indefinidamente".

Quando nos encontramos frente a frente com a paciente anoréxica, ela nos passa a nítida sensação de que nem os sofrimentos do corpo nem mesmo a própria morte surgem para ela como limites ou mesmo como sinais de alarme em relação à própria vida. Nessa cena, parece que se alguém está preocupado com a subsistência da paciente, este será o médico, o psicanalista, o psiquiatra etc.

Shutterstock
Jean-Martin Charcot

Neurologista natural de Paris, na França, Jean-Martin Charcot se tornou professor de Anatomia Patológica em 1860. Dois anos depois, fundou uma clínica, tendo como aluno Sigmund Freud. Durante seus estudos, foi o primeiro a descrever os sintomas da histeria, mal que tentou curar por intermédio da hipnose. A partir das pesquisas de Charcot, Freud passou a investigar as causas patológicas da histeria.

Caso emblemático

Tive a oportunidade de presenciar, na clínica, alguns casos de pacientes portadores de transtornos alimentares. Especificamente naquele que agora me ocorre, além da bulimia, também havia como um sintoma predominante a presença da amenorreia. Tratava-se de uma mulher de 35 anos, muito culta e bem posicionada profissionalmente. Vale salientar que na sua relação com a mãe, esta parecia se negar a perceber que a filha havia crescido, tratando-a desde sempre como a uma menininha que deveria responder as suas ordens. 

Essa paciente não menstruava há anos a fio e fazia alguns tratamentos médicos sem nenhum sucesso. Por intermédio da análise, enquanto trabalhávamos insistentemente a sua relação com a mãe, mostrando-lhe como ela mesma fazia o contraponto, aceitando se manter como a menininha da mamãe, me ocorreu dizer-lhe que para mim fazia todo o sentido a sua ausência de menstruação, já que menininhas não menstruam! Ajudando- a a crescer, com o tempo ela pôde olhar para essa mãe não mais como uma adulta e uma criança, mas sim como duas adultas, ou melhor, como duas mulheres. Uma vez mulher, ela pôde voltar a menstruar.
Desse modo, ressalto que os ditos transtornos alimentares, na verdade, são quadros psicopatológicos de cunho multifatorial e que seu tratamento jamais pode prescindir de um enfoque multidisciplinar. Diríamos que é no extremo sofrimento que poderemos notar que o indivíduo se perde, mas que, ao mesmo tempo, se encontra.


Shutterstock
A anoréxica sofre e por mais paradoxal que pareça tem uma relação de paixão com o alimento, criando uma tensão entre a necessidade e a negação em atendê-la

REFERÊNCIAS
BIDAUD, E. Anorexia. Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 
BRUNO, C. A. N. B. (Org.). Distúrbios Alimentares. Uma Contribuição da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2010.
FREUD, S. Estudos sobre a Histeria. In: Obras Completas, v. II. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1895b/1970.


Fonte: Revista Psique

Nossa visão do futuro pode deprimir nosso presente

Prospecção
Uma visão pessimista do futuro pode não ser uma consequência da depressão, mas a causa da depressão.
Essa é a conclusão de Ann Marie Roepke e Martin Seligman, da Universidade da Pensilvânia, em um artigo publicado no British Journal of Clinical Psychology.
Os dois pesquisadores realizaram uma revisão da literatura científica sobre a depressão e a "prospecção" - a representação mental que as pessoas fazem sobre como o futuro pode ser.
Eles identificaram três tipos de "prospecção defeituosa", que podem levar à depressão:
  1. falta de capacidade de geração de cenários dos "futuros possíveis";
  2. avaliação ruim dos "futuros possíveis"; e
  3. crenças negativas sobre o futuro.
Futuros mais brilhantes
O humor deprimido, por sua vez, pode atrapalhar e empobrecer a prospecção, alimentando assim um ciclo vicioso, no qual a pessoa mergulha cada vez mais na depressão.
Esta conclusão está em linha com outros estudos, que demonstraram que ootimismo melhora a saúde e faz viver mais.
Os pesquisadores sugerem que a prospecção "defeituosa" pode ser tratada por meio de estratégias da terapia cognitivo-comportamental (TCC), uma forma de "terapia da conversa", que aborda os padrões de pensamento que podem levar a problemas com o humor ou o comportamento.
"Uma compreensão de como a prospecção formata a psicopatologia pode permitir aos pesquisadores criar tratamentos mais eficazes e ajudar os indivíduos em dificuldades a criar futuros mais brilhantes," concluíram os autores em seu artigo.
E, antevendo futuros mais brilhantes, livrar-se das emoções negativas no presente.
Fonte: Diário da Saúde

Acredite ou não, você é parcial e tem seus preconceitos

Viés de parcialidade
Está bem estabelecido na literatura científica que as pessoas têm um "ponto cego de parcialidade", o que significa que elas têm menos probabilidade de detectar o viés em si mesmas do que nos outros.
Por exemplo, poucos médicos admitem que os brindes que recebem das empresas farmacêuticas influenciam sua prescrição de medicamentos, mas uma grande porcentagem desses mesmos médicos admite que os brindes influenciam a prescrição feita por seus colegas, explica o Dr. Erin McCormick, da Universidade Carnegie Mellon (EUA).
O que é preciso estudar mais é o quanto somos cegos para o nosso próprio grau real de parcialidade, e como racionalizamos para defender que somos menos tendenciosos do que os outros.
Para isso, uma equipe de quatro universidades norte-americanas desenvolveu uma ferramenta para medir o "ponto cego do preconceito".
Ponto cego do preconceito
Para o estudo, os pesquisadores fizeram cinco experimentos para ver se a incapacidade de ver a própria parcialidade - o ponto cego do preconceito - estaria associada a traços tais como o QI, capacidade de tomada de decisão em geral e autoestima, além de procurar por diferenças individuais no ponto cego.
O resultado mais revelador foi que todos são afetados pelo ponto cego da parcialidade - apenas um adulto dentre os 661 voluntários concordou que era mais tendencioso do que a pessoa média.
Os dados revelaram ainda que acreditar que se é menos tendencioso do que seus pares tem consequências prejudiciais sobre os julgamentos e comportamentos das pessoas, incluindo aceitar conselhos úteis para se livrar dos próprios preconceitos.
Conhecer a si mesmo
Embora algumas pessoas tenham-se mostrado mais suscetíveis ao ponto cego do preconceito do que outras, inteligência, capacidade cognitiva, capacidade de decisão, autoestima, autoapresentação e outros traços de personalidade não mostraram nenhuma associação com o viés e com a incapacidade de vê-lo em si mesmo.
A equipe também descobriu que as pessoas com um ponto cego particularmente forte são as mais propensas a ignorar o conselho de colegas ou especialistas, e são menos propensas a tirar proveito de treinamentos que poderiam melhorar a qualidade de suas decisões e ajudar a diminuir ou eliminar o viés de parcialidade.
Isto dá suporte ao conselho milenar de que conhecer a si mesmo é o primeiro passo rumo a tornar-se uma pessoa melhor.
Fonte: Diário da Saúde
. Acesso em: 29 jun. 2015 

Neurociência: A revolução da nutrição na saúde mental

O atual modelo de saúde mental privilegia excessivamente o uso de medicamentos. No entanto, um novo paradigma na Psiquiatria pode trazer mais benefícios para a sociedade com uso eficaz do conhecimento científico sobre nutrição e o funcionamento do cérebro

Shutterstock

Em um artigo recentemente publicado na revista Lancet Psychiatry, os acadêmicos da Sociedade Internacional para Pesquisa em Psiquiatria Nutricional descrevem o estado atual do modelo de saúde mental como sendo focado essencialmente na Psicofarmacologia. Segundo o artigo, esse modelo obteve somente modestos benefícios na melhora das condições globais de saúde mental. Essa publicação tem um papel importante, pois é assinada conjuntamente por dezenas de pesquisadores do mundo todo, que se uniram na defesa de um novo paradigma na Psiquiatria. Os autores apontam que crescem a cada dia as evidências de que a nutrição é um fator crucial, tão importante para a Psiquiatria como é para a cardiologia ou endocrinologia.

Segundo esse consórcio internacional de pesquisadores, as abordagens farmacológicas têm conquistado uma redução apenas moderada na escalada mundial de problemas mentais. No entanto, estimativas apontam que a expansão de doenças relacionadas aos transtornos mentais continuará a crescer nas próximas décadas, em especial às desordens relacionadas a quadros de depressão e ansiedade, que são altamente incapacitantes. Entre outras causas, podemos listar uma rápida urbanização, que levou a uma transição para estilos de vida diferentes dos tradicionais. O meio urbano leva à piora nos padrões de dieta, de atividade física e altera dramaticamente o tecido das estruturas sociais, fatores que têm sido associados à depressão e outros problemas mentais.

Por outro lado, as evidências que sustentam o papel da nutrição na saúde mental cada vez se acumulam mais. No mundo atual, as populações, tanto em países desenvolvidos como nos emergentes, consomem preferencialmente comida processada, que é rica em poluentes e pobre em nutrientes. Estamos em uma situação singular na história, onde a maior parte da humanidade está, ao mesmo tempo, superalimentada, mas desnutrida. Mesmo nos países ricos, muitos indivíduos têm consumo cada vez mais elevado de calorias, mas sem atingir os níveis recomendados de ingestão de nutrientes essenciais para o cérebro, como vitaminas do complexo B, zinco e magnésio. Vivemos em uma era de epidemia de doenças mentais e físicas, em grande parte agravadas pelo sedentarismo, uso de álcool e drogas, consumo de cigarros e dieta pobre em nutrientes. O custo estimado pela Organização Mundial da Saúde, relacionado às doenças físicas e mentais, é de 47 trilhões de dólares até o ano 2020, caso ações efetivas e substanciais não sejam feitas.

Uma dieta tradicional consistindo em alta ingestão de vegetais, frutas, frutos do mar, grãos integrais, nozes e legumes, evitando comida processada, aumenta a probabilidade de prover os nutrientes que permitem resiliência contra a psicopatologia. Com base nesse cenário, os acadêmicos da Sociedade Internacional para Pesquisa em Psiquiatria Nutricional propõem uma mudança de paradigma na Psiquiatria, com forte impacto na Psicologia, consolidando uma nova estrutura de conceitos que considera os fatores nutricionais como fundamentais. Afinal, o cérebro trabalha em uma taxa metabólica muito alta, e usa uma porção substancial da energia total e da ingestão de nutrientes. Na estrutura e na função, o cérebro depende de aminoácidos, gorduras, vitaminas e minerais, tanto na comunicação intracelular como intercelular.
Os hábitos alimentares modulam o funcionamento do sistema imune, que é moderador para o risco de ocorrência depressão. Os hábitos alimentares afetam a plasticidade neural e mecanismos de reparo ao longo do desenvolvimento humano. Novos estudos epidemiológicos demonstraram associações robustas entre nutrição saudável e baixa prevalência, bem como risco reduzido, de depressão e suicídio. Nutrição materna e no início da vida emerge como determinante de saúde mental futura em crianças.

Uma revolução nutricional abala os alicerces da Psiquiatria e impacta a Psicologia, levando a um novo entendimento dos conceitos de saúde e de doença

Por outro lado, deficiências de macronutrientes, durante períodos cruciais do desenvolvimento, têm sido implicadas na patogênese de psicoses e transtornos depressivos. O estudo europeu de grande porte denominado PREDIMED indicou aleatoriamente sujeitos para diferentes tipos de dieta, e aqueles que receberam a dieta do Mediterrâneo tiveram forte proteção para depressão. Outro ensaio clínico mostrou que o aconselhamento nutricional foi tão efetivo como a Psicoterapia na prevenção de depressão em pessoas da terceira idade.

Essas evidências trazem implicações importantes, pois a nutrição não pode ser ignorada e negligenciada por um profissional de saúde mental. Mesmo um psicólogo clínico, que não atua em intervenções diretas no plano farmacológico ou psicobiológico, tem um papel importante na psicoeducação dos seus pacientes, trabalhando durante a Psicoterapia na reestruturação de crenças sobre hábitos alimentares, atuando em equipes multiprofissionais com médicos nutrólogos, psiquiatras ou nutricionistas, e mesmo recomendando busca de informações e de acompanhamento profissional. A Psicoterapia é muitas vezes a impulsionadora de mudanças importantes nos hábitos negativos e no estímulo aos positivos, como sono, exercício e, por que não, nutrição. A formação do médico e do psicólogo deve incluir treinamento que foque no papel da nutrição na função cerebral e na saúde mental. E esses profissionais devem exercer pressão na esfera governamental para desenvolvimento de políticas públicas que promovam melhoria de hábitos alimentares e estilo de vida mais saudável.

Marco Callegaro é psicólogo, mestre em Neurociências e Comportamento, diretor do Instituto Catarinense de Terapia Cognitiva (ICTC) e do Instituto Paranaense de Terapia Cognitiva (IPTC). Autor do livro premiado O Novo Inconsciente: Como a Terapia Cognitiva e as Neurociências revolucionaram o modelo do processamento mental (Artmed, 2011)

Para saber mais:
Sarris et al. Nutricional Medicine as Mainstream in Psychiatry. Lancet Psychiatry, v. 2, n. 3, p. 271-274, mar. 2015.
Sánchez-Villegas et al. Mediterranean Dietary Pattern and Depression: the PREDIMED Randomized Trial. BMC Medicine, n. 11, p. 208, 2013.


Fonte: Revista Psique

Pessoas com deficiência mental podem ser punidas?

Histórias como a de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, de 29 anos, que sofre de esquizofrenia e foi preso em 2010 acusado pelo assassinato do cartunista Glauco Vilas Boas e do filho dele, Raoni Vilas Boas, chamam a atenção para como a doença mental é vista pelas leis brasileiras. Segundo o Código Penal Brasileiro, a doença mental ou retardamento (desenvolvimento mental incompleto ou retardado) tornam o indivíduo inimputável perante a Justiça Penal.
Tal benefício está disposto no artigo 26 do Código Penal. “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato”. Diante de tais circunstâncias, o indivíduo será avaliado clinicamente e, se comprovado que por conta de sua condição era totalmente incapaz de discernir suas atitudes, não poderá responder pelos seus atos.
Entretanto, não significa que o portador de doença mental o retardamento poderá retornar para a sociedade. Análise psicológica deverá avaliar o grau de periculosidade e, se necessário, a Justiça poderá solicitar sua internação em instituição específica por tempo determinado.
Foi exatamente isso que aconteceu com Carlos Eduardo, conhecido como Cadu. Apesar de ter confessado a morte do cartunista e de seu filho, o jovem não chegou a ser julgado porque a Justiça o considerou inimputável. Assim, Cadu foi internado em uma clínica psiquiátrica em Goiânia. Mas, em agosto de 2013 a Justiça de Goiás decidiu, diante de avaliação médica realizada em junho daquele ano, que ele estava apto a receber alta médica.
Porém, em setembro de 2014, Carlos Eduardo foi preso, juntamente com outro indivíduo, acusados de um roubo seguido de morte (latrocínio) e pela tentativa de outro latrocínio. E novamente conduzido a internação. 
Outro aspecto que deve ser abordado e diferenciado da imputabilidade, aplicada quando o indivíduo é “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato”, é quando a pessoa apresenta, no momento do fato ilícito, alguma capacidade de discernimento.
De acordo com o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal, “se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardamento não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” gozará de benefício, mas não da imputabilidade total. Neste caso, a pena prevista para o crime praticado poderá ser reduzida de um a dois terços.
Por fim, ainda sob a luz do Direito Penal, a pessoa com doença mental ou desenvolvimento incompleto pode também ser objeto de ação de terceiros. Isto é, ser usado como arma ou um instrumento para praticar alguma conduta ilícita. Neste contexto, o indivíduo que provocar ou instigar qualquer ato ilícito de alguém com deficiência mental, deverá responder pelos resultados obtidos, conforme o artigo 13 do Código Penal.
Fonte:(EN)Cena

Atenção em rostos com raiva pode indicar risco de depressão

Lado ruim

A depressão é uma condição muito difícil de curar totalmente: até 80 por cento dos indivíduos com um passado histórico de depressão ficarão deprimidos novamente no futuro.
No entanto, pouco se sabe sobre os fatores específicos que colocam essas pessoas em risco de recaída.
Uma pista importante foi descoberta agora por Mary Woody e Brandon Gibb, da Universidade de Binghamton (EUA).
Eles mostraram que o risco de recaída na depressão pode ser aumentado pelo foco no "lado ruim" das outras pessoas.

Foco na raiva

A dupla recrutou 160 mulheres - 60 com um histórico passado de depressão, e 100 sem história de depressão.
A cada voluntária foi mostrada uma sequência de dois rostos, um com uma expressão neutra e outro com uma expressão emocional, que podia ser irritada, triste ou feliz.
Usando um sistema automático de rastreamento dos olhos, ficou claro que as mulheres com um histórico de depressão prestam mais atenção nos rostos irritados.
Mais importante ainda, entre as mulheres com um histórico de depressão, aquelas que tenderam a olhar mais tempo para os rostos raivosos estavam em maior risco de desenvolver depressão novamente ao longo dos próximos dois anos, período no qual elas foram acompanhadas.

Treinar a atenção

"Se você anda por aí, dia após dia, sua atenção será atraída para certas coisas e você tenderá a olhar para algumas coisas mais do que para outras. O que nós mostramos é que, se a sua atenção é atraída para pessoas que parecem estar com raiva de você ou lhe criticando, então você está em [maior] risco para a depressão ", disse o professor Brandon Gibb.
Para tentar lidar com esses tipos de vieses de atenção, os pesquisadores estão trabalhando com programas de computador e jogos eletrônicos para treinar a atenção das pessoas e dar-lhes um foco mais positivo.
Esta abordagem já se mostrou promissora no tratamento da ansiedade, e agora está sendo testada como um tratamento para a depressão.

Fonte: Diário da Saúde

Disponível em: http://www.diariodasaude.com.br/news.php?article=atencao-rostos-raiva-indicar-risco-depressao&id=10662. Acesso em: 25 jun. 2015

terça-feira, 16 de junho de 2015

Crianças com TOC podem ter alterações em circuitos cerebrais

Pesquisadores da USP observaram em voluntários uma menor ativação na região medial dorsal do lobo frontal, área associada a funções cognitivas complexas

Conferir se a porta está bem trancada várias vezes em pouco tempo, lavar as mãos excessivamente ou perder horas contando padrões em figuras de azulejos. São exemplos de atos repetitivos ou rituais frequentes em pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Estima-se que o distúrbio atinja mais de 4 milhões no Brasil. Sua causa é possivelmente multifatorial – envolve predisposição genética, desequilíbrio neuroquímico e fatores psíquicos. Agora, um estudo da Universidade de São Paulo (USP) mostra que crianças com TOC podem apresentar comprometimento em alguns circuitos cerebrais.
A literatura científica mostra que pacientes com o transtorno apresentam alterações na memória e nas funções executivas, o que pode influenciar o planejamento e a concretização de comportamentos. O psicólogo Marcelo Camargo Batistuzzo suspeitava que a dificuldade pudesse estar relacionada com falhas na organização do conteúdo que é preciso memorizar durante a codificação de estímulos. Pata testar a hipótese, Batistuzzo e sua equipe decidiram investigar a atividade cerebral de crianças e adolescentes. Eles selecionaram 50 voluntários entre 7 e 17 anos, de ambos os sexos e mesmo nível socioeconômico – 25 diagnosticados com o transtorno e 25 saudáveis (grupo de controle) – e os submeteram a ressonância magnética enquanto realizavam testes de memória.
Durante o exame, os participantes foram expostos a 32 palavras, que foram divididas em duas listas (16 cada uma) – na primeira, de mesma categoria semântica, e na segunda, sem relação entre si. Os termos tinham entre duas e cinco sílabas. Os voluntários visualizavam cada um três vezes por dois segundos. No final, deveriam repetir o máximo que pudessem. Os resultados mostram que não houve diferença significativa entre os grupos em relação à quantidade de palavras lembradas e nem ao índice semântico (que reflete a capacidade de relacionar termos em uma mesma classe, permitindo evocar maior quantidade).
As discrepâncias surgiram quando os cientistas analisaram a correlação entre esses dois fatores. Segundo eles, os voluntários saudáveis utilizaram uma estratégia em que podiam prever o número de termos de que se recordariam, de modo que, quanto mais os categorizavam, mais se lembravam deles. Essa tática, porém, não foi verificada entre as pessoas com TOC. Os pesquisadores observaram também que essa habilidade tendia a ser mais aprimorada nos participantes mais velhos, mas somente entre os que não tinham o distúrbio.
“Essa dificuldade ao longo do desenvolvimento é esperada. Na medida em que a pessoa com TOC cresce, o tempo de convivência com os sintomas obviamente aumenta e as dificuldades cognitivas ficam mais intensas”, esclarece Batistuzzo. Ele afirma ainda que os pacientes demonstraram menor ativação na região medial dorsal do lobo frontal, uma área associada a diversas funções cerebrais complexas. “Os resultados são intrigantes. Acreditamos que a hipoativação dos circuitos neurais pode ser um prejuízo relacionado ao transtorno, apesar de seus efeitos ainda não se manifestarem no comportamento”, ressalta. O psicólogo sugere que os participantes sejam reavaliados num novo estudo na fase adulta.
Com informações da Agência USP.

Fonte: Scientific American Mente Cérebro

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Angústia ou Borderline?

Marilyn Monroe foi um ícone de beleza e fama, porém um conjunto de características em sua personalidade mostra um comportamento carente, instável e imaturo. Alguns estudos psicológicos equivalem sua extrema agonia ao transtorno de personalidade Borderline


A atriz americana Marilyn Monroe povoa até hoje o imaginário popular. Sua morte precoce, envolta em mistério, serviu para fortalecer ainda mais a ideia do mito. Marilyn era vista como dona de uma personalidade imatura, carente, instável e excessivamente sedutora; somada a uma autoestima baixa e constantes comportamentos autodestrutivos, chegando a receber, por parte de alguns psiquiatras, o diagnóstico de personalidade Borderline. Diagnóstico esse que foi introduzido na década de 1930, caracterizando-se pela notável instabilidade no funcionamento. Através de revisão de literatura, foi feita uma análise da personalidade de Marilyn, comparando-a aos critérios diagnósticos do transtorno de personalidade Borderline (TPB). O estudo confirmou a possibilidade do referido diagnóstico, embora outros tenham sido levantados reafirmando que, independente das classificações, o fato é que Marilyn apresentava uma personalidade com um lado saudável e um outro muito doente que se sobrepunham com frequência e que em toda sua vida repercutiu numa série de comportamentos disfuncionais que acabaram por levá-la à morte.

Trajetória amargurada
Desde criança, Marilyn sonhava em se tornar uma grande artista. Começou fazendo fotos, depois pequenos papéis, até passar a ser reconhecida por seu visível talento para a comédia, embora também tenha surpreendido a crítica nas vezes em que se arriscou em papéis dramáticos. Casou-se pela primeira vez aos 16 anos, com Jim Dougherty, separando- se poucos anos depois. Mais tarde casou-se com o famoso jogador de beisebol americano, Joe DiMaggio. E por fim foi casada com o dramaturgo Arthur Miller. Seus relacionamentos foram marcados por sua constante necessidade de aprovação e atenção. Um fato curioso é que tinha o hábito de chamar todos seus maridos da mesma forma: “Daddy”, papai em inglês.

Ao mesmo tempo em que demonstrava certa dependência emocional nas relações, paradoxalmente costumava ser extremamente sedutora, chegando muitas vezes a ser infiel. Durante seus casamentos e no intervalo entre uma relação mais estável e outra, Marilyn teve inúmeros casos amorosos. Alguns viraram escândalos, como o que teve com o ator Yves Montand, durante as filmagens de Adorável Pecadora (Let’s Make Love) – ambos eram casados. Enorme repercussão também teve o caso com o ator Tony Curtis, com quem gravava Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot). Na época, Marilyn engravidou. Curtis afirma ter certeza de que o filho era dele e não de Arthur Miller, com quem era casada. Contudo, ela sofreria um aborto espontâneo logo depois.

Ao mesmo tempo em que demonstrava certa dependência emocional nas relações, Marylin Monroe paradoxalmente costumava ser extremamente sedutora, chegando muitas vezes a ser infiel

Marilyn apresentava uma personalidade com um lado saudável e um outro muito doente que se sobrepunham com frequência e que em toda sua vida repercutiram numa série de comportamentos disfuncionais

PRINCIPAIS SINTOMAS DO TPB:
• Sentimento crônico de vazio existencial e tédio.
• Falta de sentimento consistente de identidade.
• Medo patológico de ser abandonado – uma pequena rejeição pode gerar imensa descompensação emocional.
• Dificuldade acentuada na regulação das emoções.
• Tendências impulsivas para comportamentos auto ou heteroagressivos, frutos de um Superego imaturo, facilitando a ação em detrimento da mentalização e da verbalização das emoções e dos impulsos.
• Humor instável com episódios de ansiedade, irritabilidade, depressão, ciúme doentio; tudo isso com flutuações que podem ser de dias, horas e até minutos. Aliás, aqui deve-se abrir um parênteses a fim de diferenciar o TPB do transtorno afetivo bipolar (TAB) – transtorno com o qual muitas vezes o TPB é confundido –, pois os pacientes com TAB tendem a demorar mais tempo para ciclarem de um afeto a outro.
• Comportamentos de automutilação (comportamento parasuicida) que são usados como forma de chamar a atenção do outro, expressar raiva ou fugir de afetos opressivos.
• Tentativas de suicídio – muitas vezes tentativas manipuladoras – sendo, nesse transtorno, o ato suicida muito mais fruto de um impulso do que de um planejamento.
• Autoestima baixa.
• Autoimagem frágil e instável gerando mudanças frequentes de projetos pessoais e profissionais, de círculos de amizade e até de opinião.
• Relacionamentos afetivos intensos e de extremos entre idealização e desvalorização. Costumam ver os outros como figuras de apego apoiadoras ou como sádicas, quando essas ameaçam deixá-los.
• Angústia difusa e flutuante; sintomas de aparência neurótica; traços de personalidade infantil, depressiva e masoquista.
Os diferentes padrões de comportamento utilizados na hora de lidar com as situações vivenciadas refletem características típicas de determinados tipos de personalidade. O exagero nesse padrão pode levar ao desenvolvimento de um transtorno

Porém, dentre todos os seus casos, sem dúvida o que mais repercutiu foi o que teve com o então presidente americano John Fitzgerald Kennedy (JFK). Ele, conhecido pela infinidade de relacionamentos amorosos que costumava ter, viu em Marilyn apenas a possibilidade de mais uma conquista. Ela, porém, apesar da relação fugaz que tiveram, após perceber a rejeição de JFK – que simplesmente parou de atender seus telefonemas –, desenvolveu uma espécie de obsessão em relação a ele: ligava incansavelmente para a Casa Branca, mandava-lhe bilhetes, procurava notícias por JFK, Marilyn tomou uma superdose de remédios, tendo que ser, mais uma vez, internada para desintoxicação. Aliás, essa era uma prática comum na sua vida: uso abusivo de álcool e remédios como forma de lidar com as frustrações que, no seu caso, ocorriam sempre quando era criticada, rejeitada, decepcionada, magoada.
Por seus maridos, assim como pelas pessoas com que conviveu mais intimamente, era vista como um paradoxo: frágil, mas ao mesmo tempo manipuladora; carente, mas volúvel; sedutora e meiga, porém calculista; ora uma criança que necessitava de proteção, ora uma mulher mimada e maquiavélica.
Com o cantor Frank Sinatra teve um caso durante muitos anos. Diz-se que ele foi apaixonado por ela, porém se incomodava com sua frequente necessidade de atenção – considerava Marilyn excessivamente dependente emocionalmente, fato que dizia não suportar. A instabilidade dos relacionamentos afetivos acabava por repercutir no trabalho de Marilyn, sendo responsável por seus atrasos e faltas.

Transtorno Borderline
Etimologicamente, o termo personalidade originou-se de “persona”, que é a máscara usada pelos personagens do teatro grego. A personalidade se caracterizaria por dois aspectos paradoxais: estabilidade e dinamismo. Estabilidade porque tende a se manter a mesma ao longo da vida, no entanto, é passível de mudanças a partir de alterações neurobiológicas e existenciais.

O termo personalidade é usado para ilustrar o comportamento do indivíduo, assim como suas idiossincrasias. Na tentativa de descrever a personalidade do sujeito, podemos utilizar adjetivos com significados psiquiátricos, como personalidade passiva ou agressiva; ou adjetivos do cotidiano, como personalidade ambicional ou amigável.
As bases do desenvolvimento da personalidade estariam na hereditariedade e no ambiente que irão interagir formando um indivíduo único. Os diferentes padrões de comportamento utilizados na hora de lidar com as situações vivenciadas refletem características típicas de determinados tipos de personalidade. Porém, um exagero nesse padrão pode levar ao desenvolvimento de um transtorno de personalidade (TP), cujos traços são rígidos e mal-adaptativos, levando ao comprometimento do desempenho e/ou sofrimento.
No que concerne ao viés genético, estudos vêm comprovando o quanto essa influência é mesmo significativa na formação da personalidade. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos tornou-se uma das maiores evidências do quanto os fatores genéticos estão associados aos TP. Nela, foram investigados 15 mil pares de gêmeos, e o resultado mostrou que entre os gêmeos monozigóticos havia uma concordância muito maior do que aquela percebida nos gêmeos dizigóticos. O mais espantoso é que os monozigóticos que cresceram separados tornaram-se tão parecidos quanto aqueles que foram criados juntos. Semelhanças que incluem desde o temperamento a interesses ocupacionais e de lazer.

Etimologicamente, o termo personalidade originou-se de “persona”, que é a máscara usada pelos personagens do teatro grego

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) – DSM-IV, os transtornos de personalidade estariam divididos em três grupos. No grupo A estão os TP Esquizoide, Esquizotípica e Paranoide. Os indivíduos desse grupo tendem a ser vistos como estranhos e excêntricos. No grupo B estão os TP Antissocial, Narcisista, Histriônico e Borderline, vistos como dramáticos, emocionais e erráticos. No grupo C estão os TP Esquivo, Dependente e Obsessivo-Compulsivo, além da categoria chamada de TP sem outra especificação – ambos os grupos caracterizados por sujeitos ansiosos e medrosos.
Neste trabalho buscou-se melhor compreensão a respeito do TPB. Segundo a psicóloga americana Marsha Linehan, professora da Universidade de Washington, os pacientes borderlines seriam o equivalente psicológico dos pacientes que sofreram queimadura de terceiro grau, ou seja, não têm proteção emocional, e isto faria com que estivessem sempre susceptíveis à extrema angústia.
Por ser um transtorno da personalidade, pode ser confundido, no início, com um temperamento um pouco mais impulsivo. Por essa razão um paciente leva em média de cinco a dez anos para ser diagnosticado. Normalmente o que os leva ao consultório são problemas decorrentes do transtorno, como abuso de álcool e drogas, depressão, automutilação, doenças psicossomáticas graves, transtornos alimentares – estudos mostram que a prevalência de anorexia, bulimia e transtornos alimentares não específicos é maior em pacientes com diagnóstico de TPB .
Pesquisa americana revela que quando se trata de formação de personalidade, os gêmeos monozigotos possuem uma concordância maior do que a percebida em gêmeos dizigóticos

As bases do desenvolvimento da personalidade estariam na hereditariedade e no ambiente que irão interagirformando um indivíduo único

O diagnóstico só costuma ser fechado a partir dos 18 anos, quando a personalidade já está razoavelmente definida. Só dessa forma se consegue ter certeza de que o comportamento errático não está limitado à adolescência e todas suas turbulências emocionais e comportamentais.
A instabilidade talvez seja a característica mais evidente do transtorno pois, como vimos, esses pacientes tendem a oscilar afetivamente, rapidamente, de um estado a outro: ora estão com raiva, no momento seguinte estão apavorados, depois impulsivos, de repente frágeis; a ponto de darem a impressão de que são pessoas diferentes. Isso os difere de pacientes mais saudáveis, que costumam oscilar o afeto com menor frequência e intensidade. Além disso, quando oscilam de um afeto a outro, os pacientes saudáveis mantêm uma espécie de meio-termo entre eles – como se um afeto moderasse a intensidade do outro, algo que não ocorre no TPB, onde um afeto parece totalmente dissociado do outro.
Alguns estados patológicos do paciente borderline seriam um tipo de regressão a estados emocionais vividos intensamente na infância. Muitos desses estados são extremamente infantis, sendo desorientadores tanto para o paciente como para os outros. Uma criança só amadurece e aprende a ser independente quando consegue procurar a imagem dos pais dentro de si, e não à sua volta, porém, a partir do momento em que ela não consegue realizar essa internalização, está dado o primeiro passo para a formação de um adulto doentiamente carente. Assim, a tentativa de anestesiar sentimentos de solidão e vazio é expressa através de uma forte dependência da presença do outro; sendo a sensação de separação relativa a esse outro geradora de angústia de separação, que tenta ser evitada de todas as formas pelo sujeito.

Normalmente, o que leva os pacientes com transtorno borderline ao consultório são problemas decorrentes do abuso de álcool e drogas, depressão, automutilação, doenças psicossomáticas graves, transtornos alimentares

Young relaciona ao TPB quatro padrões desadaptativos centrais, denominados por ele como modo criança abusada e abandonada; modo criança zangada e impulsiva; modo pais punitivos; e o modo protetor desligado

As relações que o borderline estabelece têm como cerne o desejo de ser amado. Isso acaba por levar à dependência no aguardo de satisfações positivas e de proteção. Pode ser uma pessoa, mas pode também ser um grupo, uma ideologia ou um produto de substituição, quando o precedente falta. Dessa maneira, só conseguindo se definir a partir do outro, o borderline muda constantemente de área de estudo, religião e estilo de vida, ao sabor das influências, pois dessa forma se torna mais próximo das pessoas afastando a possibilidade de rejeição e abandono. Esse comportamento, que é típico do borderline, é semelhante ao do adolescente. E de fato é como se eles vivessem uma adolescência vinte anos mais longa. Vinte anos não é força de expressão: ainda não se sabe o porquê, mas a partir dos 41 anos costumam ser atenuados todos os sintomas referentes ao transtorno.

Maior abandonado 
A sensação de abandono é comum a todos os pacientes. É como se vivessem constantemente o sentimento da criança pequena que teme a mais breve ausência dos pais – que são as fontes de nutrição, afeto e amparo – como uma perda eterna. À vivência infeliz do passado é acrescida à esperança de salvação na relação de dependência do outro. O sofrimento psíquico é de difícil elaboração, e assiste-se no borderline a incessantes investimentos numa busca constante do que nunca teve e parece não conseguir perceber que nunca terá: um amor incondicional. Por conta disso, os aspectos de sedução, carência e distimia são evidentes no comportamento deles. Seu Ego frágil precisa de compreensão, apoio e afeição, gerando assim condutas sedutoras ou de domínio.

Segundo o psicólogo americano Jeffrey Young, dentro dos transtornos de personalidade haveria o que ele chama de “esquemas desadaptativos”. Um esquema seria uma estrutura formada por memórias, emoções e sensações corporais desenvolvidas durante a infância ou adolescência, e que interfere na forma como o indivíduo enxerga a si próprio, o mundo e os outros.

A sensação de abandono é comum a todos os pacientes. É como se vivessem constantemente o sentimento da criança pequena que teme a mais breve ausência dos pais – que são as fontes de nutrição, afeto e amparo – como uma perda eterna

Segundo o psicólogo americano Jeffrey Young, dentro dos transtornos de personalidade haveria o que ele chama de “esquemas desadaptativos”. Um esquema seria uma estrutura formada por memórias, emoções e sensações corporais desenvolvidas durante a infância ou adolescência, e que interfere na forma como o indivíduo enxerga a si próprio, o mundo e os outros.
Young relaciona ao TPB quatro padrões desadaptativos centrais, denominados por ele da seguinte forma: modo criança abusada e abandonada; modo criança zangada e impulsiva; modo pais punitivos; e o modo protetor desligado. Porém, intercalando entre esses quatro modos, também existe o modo adulto sadio que costuma emergir quando os outros não estão ativados.
O modo criança abusada e abandonada é ativado pelo desespero frente à possibilidade do abuso ou abandono real ou imaginário. Nesse modo, o paciente tende a se comportar como uma criança aborrecida e desesperada, ansiando por atenção e afeto. O paciente teme esse modo não apenas por conta da intensa dor emocional que sente, mas também porque em seguida é ativado o modo dos pais punitivos, onde o paciente se condena pela expressão inadequada das emoções, sentindo culpa e ao mesmo tempo raiva dele mesmo, chegando muitas vezes a se automutilar. Porém, o modo mais temido pelo próprio paciente e pelo terapeuta é o modo criança zangada/ impulsiva, onde emerge um estágio de raiva infantil ou impulsividade autogratificante – busca de gratificação imediata das necessidades. Nesse modo, a raiva que costuma ser suprimida por esses pacientes tende a aumentar, expressando-se subitamente e de forma pouco controlada, fazendo surgir novamente, após a explosão, o modo pai punitivo.

Impulsividade, manipulações, dissociação afetiva, tentativas de suicídio acompanhadas de autoagressões crônicas, foram identificadas como fatores interferindo na adesão ao tratamento de TPB

DISTÚRBIOS PARANOIDES DE MARILYN
O dr. Ralph Greenson, um de seus psiquiatras, descreveu a atriz da seguinte forma: “É como uma adolescente abandonada, imatura, borderline”. Em carta, escrita para Anna Freud, acrescenta: “Paciente borderline, com distúrbios paranoides. Doente grave”.
Abaixo estão citados os principais critérios diagnósticos do transtorno de personalidade borderline – de acordo com o DSM-V – e como cada um se relaciona com diferentes aspectos da personalidade de Marilyn.
• Esforços frenéticos no sentido de evitar um abandono real ou imaginário.
• Padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização. 
• Perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da autoimagem ou do sentimento de self.
• Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (por exemplo: gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivo). 
• Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante.
• Instabilidade afetiva, devido a uma acentuada reatividade do humor (por exemplo: episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade, geralmente durando algumas horas e apenas raramente mais que alguns dias). 
• Sentimentos crônicos de vazio. 
• Raiva inadequada e intensa ou dificuldade em controlar a raiva. 
• Ideação paranoide transitória e relacionada ao estresse ou a graves sintomas dissociativos.

Embora as pessoas e terapeutas que convivem com esses pacientes percebam claramente sua instabilidade, fica evidente que, na maior parte do tempo, eles estão no modo que Young chama de protetor desligado. Ou seja, é como se estivessem desligados de suas emoções mais dolorosas. Isso seria um estilo desenvolvido ainda na infância, a fim de sobreviver a um mundo considerado como perigoso e instável. Seria uma forma de proteger-se do apego, pois o apego levaria ao sofrimento, abandono, punição ou abuso. Dessa forma, o borderline costuma desenvolver uma série de estratégias a fim de manter esse modo, como a evitação do sentimento e pensamento: não falar, dormir, usar drogas e álcool. A angústia do borderline é uma angústia depressiva de perda do objeto, diferente da angústia de castração do neurótico e da angústia de destruição (fragmentação) do psicótico.

Por ser um transtorno da personalidade, pode ser confundido, no início, com um temperamento um pouco mais impulsivo

A angústia depressiva ocorre assim que o sujeito imagina que o objeto que o sustenta corre o risco de faltar. Vive-se uma depressão de desamparo ou depressão de abandono caracterizada por sentimento de falta, vazio, solidão e angústia de separação. É como se esse tipo de depressão “defendesse” o paciente da experiência de verdadeiramente se deprimir face às faltas.

No entanto, às vezes, o sentimento de rejeição é fruto de um abandono real. E no desespero de não se sentir desamparado, o paciente costuma demandar muita atenção de seus amigos, médicos, cônjuges ou parentes – sufocando- os e, consequentemente, afastando-os. A percepção da perda iminente de uma relação pode provocar raiva súbita, acusações depreciativas ou paranoides e atos autodestrutivos a fim de receber respostas protetoras. Episódios dissociativos, abuso de substâncias e comportamento impulsivo e desesperado também podem ocorrer. Em caso de variação de distância ou recusa do objeto, ele pode desenvolver reações tempestuosas ou paranoides.
Superficialmente, o paciente pode passar a impressão de ser saudável e racional, mas ele só consegue “ser” assim quando consegue suprimir questões importantes que, na verdade, precisam ser trazidas à tona e devidamente tratadas. Para Bergeret, o TPB tem sua origem em traumatismos precoces que têm um impacto desorganizador. Isso significa que o TPB é, antes de tudo, um transtorno dos limites internos entre as diferentes instâncias de uma mesma personalidade.
Impulsividade, manipulações, dissociação afetiva, tentativas de suicídio acompanhadas de autoagressões crônicas, tendência à regressão e agressividade foram identificadas como fatores interferindo na adesão ao tratamento dos casos acompanhados. Os sinais de melhora são muitas vezes sutis: por exemplo, o paciente que aprende a expressar seus sentimentos através da fala e não mais da autoagressão.
Ao observarmos a personalidade de Marilyn Monroe, refletida na maneira como funcionou ao longo de sua vida, a hipótese de enquadrá-la como sendo portadora de TPB torna-se possível. No entanto, se olharmos os critérios dos transtornos de personalidade dependente, assim como o histriônico, talvez também pudéssemos associá-los a ela.
De acordo com Yalom, apesar de o diagnóstico ajudar a traçar uma linha condutora do nosso trabalho, pode acabar por nos limitar, gerando avaliações tendenciosas na medida em que podemos dar menor importância a determinados aspectos que não se enquadram na hipótese inicial, apegando-nos apenas àqueles que a confirmam.


Alguns estados patológicos do paciente borderline seriam um tipo de regressão a estados emocionais vividos intensamente na infância

Decerto, independente de seu diagnóstico, Marilyn parecia ter uma personalidade com um lado saudável e um outro muito doente, que se sobrepunham com certa frequência. No final, fica a certeza de que não teve tempo suficiente de aprender a lidar com a carência e o vazio de uma forma adequada; adotando ao longo da vida apenas maneiras disfuncionais de fugir do que a angustiava, principalmente através das relações amorosas e do uso abusivo de álcool e remédios.

REFERÊNCIAS
Beck, A. T. Terapia Cognitiva dos Transtornos da Personalidade. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
Fran çois, F. Marilyn e JFK. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.
Lessana , M. M. Marilyn: Retrato de uma Estrela. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006.
Mon roe , M. Fragmentos. Barcelona: Editora Seix Barral, 2010.
Schneider, M. Marilyn: Últimas Sessões. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.
Stern, B. Marilyn Monroe: O Mito. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2007.
Taraborrelli, J. R. A Vida Secreta de Marilyn Monroe. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
Young , J. E. Terapia do Esquema. Porto Alegre: Artmed, 2008.
__________. Terapia Cognitiva para Transtornos da Personalidade Focada em Esquemas. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2003.

Amanda Patricia Sales é psicóloga clínica especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, mestre em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento (UFPE) e Treinamento em Terapia Cognitiva dos Esquemas (Schema Therapy Institute).

Fonte: Revista Psique

Disponível em: <http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/edicoes/112/artigo349990-1.asp>. Acesso em: 15 jun. 2015