O antigo filósofo estoico chamado Sêneca dizia que a cólera é o afeto dos impotentes, ou seja, daqueles que acham que têm mais poder do que de fato têm. É assim que nós representamos os tiranos e seus tiranetes, sempre impacientes, insatisfeitos e coléricos. Mas isso não quer dizer que o ódio é um afeto do qual deveríamos nos ver livres. Ademais a cólera assim como a indignação e o respeito são sentimentos que modulam nosso ódio, substituindo sua orientação destrutiva por ideais simbólicos de regulação social. Quando vejo o ódio ser elevado à condição de um sentimento social intolerável, nessa cultura da animosidade e do desentendimento generalizado, que tomou conta do Brasil, penso que há certa injustiça sendo cometida contra este afeto.
O ódio é um afeto muito importante. Diariamente encontramos pacientes que se queixam de injustiças cometidas contra si, de maus-tratos ou de desprezos sofridos. Frequentemente percebemos um personagem ausente: a raiva. Pensemos naquele marido violento, que chega em casa, chuta o cachorro e resmunga com os filhos, mas cuja esposa só consegue dizer “não é culpa dele, é da bebida” ou “no fundo ele é uma pessoa boa”. Ambos sofrem de uma patologia do ódio: ele do excesso, ela da falta. Nenhum afeto deve ser considerado um vilão do ponto de vista clínico, nem mesmo o ciúmes, ou a inveja, mas a impossibilidade de experimentá-lo ou, ao contrário, a sua perseverança, deslocamento e intensificação, sim. E cada afeto possui uma espécie de matriz funcional, um clichê experiencial, segundo a expressão de Freud, que explica a sua gênese e determina a sua série histórica. Ou seja, os afetos não têm uma memória, por isso se diz que não existem afetos inconscientes, mas eles têm um traçado, uma recorrência que une suas diferentes situações de incidência. É por isso que cada experiência de amor recapitula todas as anteriores, e cada experiência de perda nos chama para todas as perdas anteriores. Lacan dizia que todos os sentimentos são mentirosos, com exceção da angústia, porque eles nos levam a criar contextos semelhantes para acontecimentos diferentes.
O ódio é um afeto fundamental para os processos de separação. Sem ele, o sofrimento pode ser infinito, e mesmo assim nenhuma transformação é ensejada. Sem uma pitada de ódio nenhum luto termina. Sem um grama de ódio muitos casais se tornam apenas irmãos e bons amigos. Mas uma pitada ou uma grama, não é uma libra nem uma tonelada. Neste caso o ódio não está a serviço da separação e de um processo transformativo, mas da manutenção de uma unidade, ainda mais poderosa, ainda mais odiosa. Ódio que não se vive sozinho, mas que covardemente cria grupos imaginários contra inimigos imaginários, é tipicamente dirigido ao poder que se tem a mais ou a menos que o outro (inferioridade ou superioridade). É assim que ele deixa de estar a serviço da circulação e da distribuição do ter e do não ter e passa a se concentrar sobre o que o outro é, ou o sobre o que não suportamos ser. É este ódio ao ser que aparece na homofobia e na formação de grupos cujo unidade depende apenas do ódio dirigido a um grupo oposto. Ele não quer redefinir o contrato, nem fazê-lo valer, mas tudo o que ele quer é transformar uma libra de carne em um infinito de ódio, para que tudo continue como antes, no quartel de Abrantes.
Este artigo foi originalmente publicado na edição de maio de Mente e Cérebro 2015, que pode ser adquirida na Loja Segmento: http://bit.ly/ 1DKrwmD
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Fonte: Scientific American Mente Cérebro
Disponível em: http://www2.uol.com.br/ vivermente/artigos/a_funcao_ transformadora_do_odio.html. Acesso em: 20 mai. 2015
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