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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

As diversas faces de um mesmo problema

Poucos são os intelectuais contemporâneos que têm condições de reunir, em seu trabalho, uma ampla interlocução com os inúmeros campos do pensamento humano, seja psicanalítico, filosófico, artístico e científico. Esse diálogo é a proposta do psiquiatra e filósofo italiano Mauro Maldonato, que voltou a visitar o Brasil para lançar seu livro mais recente - Da Mesma Matéria que os Sonhos: Sobre consciência, racionalidade e livre-arbítrio - pelas Edições Sesc São Paulo.
Num intercâmbio intenso entre Psiquiatria e Filosofia, Neurociências e Literatura, o autor procura mostrar como a razão e a fantasia, o sentimento e a imaginação não se contrapõem, mas são parte essencial da natureza humana. Suas pesquisas constituem uma viagem por territórios desconhecidos da modernidade até as extremas consequências da mutação da identidade humana, conceito indeciso, incerto, enigmático, impensado ainda.
O italiano afirma a necessidade urgente de reconsiderar a Ciência. Ele propõe uma nova concepção da objetividade científica, que evidencie o caráter complementar e não contraditório das ciências experimentais e das ciências humanas. Não se trata de outro tipo de Ciência nem do questionamento da tradição clássica das Neurociências. Conhecedor profundo do cérebro e da mente humana, o autor desmistifica, de um lado, a retórica das ciências humanas, para liberá-la da própria solidão; do outro, critica a ideia da Ciência que se pretende objetiva e mera conhecedora dos fatos.
Maldonato é professor no Departamento das Culturas Europeias e do Mediterrâneo, na Universidade Della Basilicata. Foi professor visitante na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na Universidade de São Paulo (USP) e na Duke University (Estados Unidos). Atualmente, dirige o Cognitive Science Studies for the Research Group, na Duke University. Diretor científico da Settimana Internazionale dela Ricerca, é autor e curador de livros e artigos científicos publicados na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Brasil e na Itália.
No Brasil, tem sido convidado a participar, como conferencista, de vários seminários e congressos dentre os quais o XI Congresso Internacional de Tecnologia e Educação, que aconteceu no Recife, em setembro de 2013, e o Seminário Internacional Fronteiras em Movimento: Deslocamentos e outras dimensões do vivido, em 2012, uma realização da FFLCH USP e do Centro Cultural Banco do Brasil, sobre o tema: No mundo como estrangeiros: histórias de identidades e culturas em trânsito.
NO SEU MAIS RECENTE LIVRO, DA MESMA MATÉRIA QUE OS SONHOS: SOBRE CONSCIÊNCIA, RACIONALIDADE E LIVRE-ARBÍTRIO, VOCÊ ABORDA AS TENDÊNCIAS E OS DEBATES QUE ESTÃO EM ANDAMENTO SOBRE AS NEUROCIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS. PODE EXPLICAR QUAIS AS NOVIDADES NO CAMPO DOS ESTUDOS DO CÉREBRO HUMANO E SE HÁ, EFETIVAMENTE, UM CONFRONTO ENTRE CIÊNCIA, FILOSOFIA E PSICOLOGIA? 
Maldonato - As novidades são muitas. Basta pensar na introdução de novas metodologias de mapeamento (ressonância magnética da atividade, entre outras) para o estudo do cérebro, técnicas não invasivas que nos permitem constatar, in vivo, as alterações de uma área completa do cérebro, ao estabelecer uma correlação entre o aumento do metabolismo de uma área com o desempenho de uma função naquele momento. Acredito, porém, que a maior conquista tenha sido o aumento crescente da conscientização da opinião pública, no sentido de que estamos no caminho certo para descrever melhor a natureza humana. Pensando bem, nos últimos 50 anos, descobrimos mais coisas do que tudo o que conhecíamos nos últimos dois milênios.

A Neurociência seria, apenas, mais uma disciplina entre outras tantas se não dialogasse com as disciplinas contíguas, tanto no que se refere ao funcionamento normal do cérebro, quanto a seu funcionamento patológico. A Filosofia deve nos ajudar a supervisionar o caminho da pesquisa pela Ciência
DENTRO DESSE QUADRO, É POSSÍVEL MANTER UM DIÁLOGO ENTRE AS TENDÊNCIAS DA NEUROCIÊNCIA E DA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA COM AS QUESTÕES DA CONDIÇÃO HUMANA NA FILOSOFIA? 
Maldonato - Não só penso que seja possível, mas, também, necessário. A Neurociência seria, apenas, mais uma disciplina entre outras tantas se não dialogasse com as disciplinas contíguas, tanto no que se refere ao funcionamento normal do cérebro, quanto a seu funcionamento patológico. A Filosofia deve nos ajudar a supervisionar o caminho da pesquisa pela Ciência sem a pretensão de lhe indicar.

É VERDADEIRO DIZER QUE AS CIÊNCIAS DEMONSTRAM INCAPACIDADE EM ACEITAR SEUS LIMITES DE CONHECIMENTO, DANDO MAIS IMPORTÂNCIA ÀS CERTEZAS E RESPOSTAS, EM DETRIMENTO DOS QUESTIONAMENTOS? 
Maldonato - Dizer que a tarefa da Ciência é encontrar respostas para os enigmas da natureza soa, ao mesmo tempo, óbvio e banal. O problema aparece quando a Ciência pretende ser seu próprio fundamento, ter autonomia de qualquer relação com o sentido, culminando com a venda da alma à técnica. Por muito tempo, o critério da objetividade a dominou e dividiu. Uma Ciência, para ser digna desse nome, deveria, necessariamente, definir seu objeto e as variáveis, que permitiriam explicar e prever os fenômenos observados. Tal concepção de Ciência, qualquer que seja seu conteúdo, privilegia as certezas e respostas, em detrimento das questões que as suscitaram. Está mais próxima de uma visão de mundo do que de Ciência. Uma visão de Ciência, de fato, deveria ter como centro, em primeiro lugar, as perguntas, a experimentação, a descoberta de novas leis, as regularidades e invariâncias. Também por isso parece discutível a "versatilidade" do modelo fisicalista para as Neurociências. Como se sabe, para quem defende tal ponto de vista, fazer Ciência significa, antes de tudo, garantir a separação entre o objeto e o observador. Portanto, tudo o que não pertence ao comportamento do objeto ou que dependa de uma escolha subjetiva implica uma definição incompleta do objeto. Além disso, é justamente a partir da independência do objeto, frente ao sujeito, que nasce o conceito de "realidade física". Uma realidade, por definição, oposta à experiência psicológica do homem.

VOCÊ PROCURA MOSTRAR COMO A RAZÃO E A FANTASIA, O SENTIMENTO E A IMAGINAÇÃO NÃO SE CONTRAPÕEM, MAS, NA VERDADE, SÃO PARTES ESSENCIAIS DA NATUREZA HUMANA. PODE APROFUNDAR A QUESTÃO, DO PONTO DE VISTA PSICOLÓGICO? 
Maldonato - Fantasia, sentimento e imaginação não só não se opõem à razão como constituem, de fato, antídotos à tendência desta à abstração conceitual. Não seria exagerado considerá-las declinações diversas, encarnações da racionalidade e em nada contrapostas a ela. Além disso, muitas evidências recentes mostram que a racionalidade não é uma característica inata de nossa espécie, mas o resultado de um longo processo evolutivo, mantido por uma lógica natural e por estratégias cognitivas simples, rápidas e eficazes.

VOCÊ DIZ QUE "NÃO ESTAMOS EM CONDIÇÕES DE COMPREENDER FENÔMENOS COMO PERCEPÇÃO, CONSCIÊNCIA, DECISÃO, CONSCIENTIZAÇÃO CONSCIENTE E LIVRE-ARBÍTRIO". POR QUE AFIRMA ISSO E POR QUE A MENTE HUMANA AINDA NÃO ESTÁ PREPARADA PARA ENTENDER ESSES ASPECTOS? 
Maldonato - No estágio atual, não somos capazes de explicar, completamente, estes fenômenos. Estamos no caminho, mas, até agora, demos apenas alguns passos. Seria extremamente útil para a Ciência evitar triunfalismos. Temas como a consciência (creio que o mais fascinante e profundo enigma do universo, junto com o nascimento da vida e do universo) requerem humildade e modéstia. Do contrário, acaba-se fazendo Ciência nociva.

COMO COMBINAR VISÕES DA LITERATURA, FILOSOFIA, EPISTEMOLOGIA E PSICANÁLISE PARA DISCUTIR AS RELAÇÕES ENTRE O EU E O OUTRO, A LINGUAGEM E O LUGAR, A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE TOLERÂNCIA, POR EXEMPLO? 
Maldonato - Não existem fórmulas. A solução poderia vir da atenção recíproca, humilde e paciente. Todas as disciplinas que você citou têm, por vários motivos, o mesmo problema: a compreensão do homem como é, e não como queremos que seja. Veja, se os dogmas religiosos podem, sempre, se voltar para as verdades da fé, com os dogmas científicos é diferente. Seus resultados têm consequências decisivas para a vida, para a liberdade, para a moral dos homens e para a sociedade. Na verdade, muitas vezes, o uso da razão se transformou em abuso da razão, em um racionalismo totalizante, que, por meio da presunção fatal de projetar e remodelar as relações humanas e sociais segundo 'um plano' predeterminado, teve efeitos destrutivos, tanto intencionais como não intencionais.

VOCÊ AFIRMA A NECESSIDADE URGENTE DE RECONSIDERAR A CIÊNCIA, PROPONDO UMA NOVA CONCEP ÇÃO DE OBJETIVIDADE CIENTÍFICA, QUE EVIDENCIA O CARÁTER COMPLEMENTAR E NÃO CONTRADITÓRIO DAS CIÊNCIAS EXPE RIMENTAIS E DAS CIÊNCIAS HUMANAS. ISSO REP RESENTA UM QUESTIONAMENTO DA TRADIÇÃO CLÁSSICA DAS NEUROCIÊNCIAS OU, SOMENTE, UMA TENTATIVA DE RENOVAÇÃO? 
Maldonato - Muitos pensadores e, até mesmo, inúmeros cientistas, há tempos, afirmam a necessidade, urgente, de uma nova concepção da objetividade científica, que evidencie o caráter complementar e não contraditório das ciências experimentais e das ciências narrativas. Não se trata de outro tipo de Ciência. Nem de colocar em discussão a tradição clássica das Neurociências. Trata-se de renovar o objeto de pesquisa nesta mesma tradição, por meio de uma linguagem que torne compreensíveis os processos e eventos que as ciências cognitivas tradicionais, até aqui, definiram por meio de aproximações fenomenológicas. Tudo isso com a consciência de que, se é verdade que, no atual estágio, nem Ciência nem Filosofia podem nos dizer muito a respeito da relação mente-corpo, acerca da consciência, entre outras questões, ambas compartilham esses mesmos problemas.

Fantasia, sentimento e imaginação não só não se opõem à razão como constituem, de fato, antídotos à tendência desta à abstração conceitual. Não seria exagerado considerá-las declinações diversas, encarnações da racionalidade e em nada contrapostas a ela
NA PRIMEIRA PARTE DO LIVRO - ELOGIO DA RACIONALIDADE IMPER FEITA - VOCÊ CITA FREUD, QUE DIZ QUE A BIOLOGIA E AS SUAS INFINITAS POSSIBILIDADES PODERIAM, EM UM DETERMINADO MOMENTO HISTÓRICO, DERRUBAR A ARQUITETURA DE NOSSAS CONVICÇÕES E CERTEZAS. PODEMOS CONSIDERAR A SÍNTESE DESSE CONCEITO EM UMA FRASE SUA: "A NATUREZA COMPLEXA DO CÉREBRO EXIGE UMA MUDANÇA DA PE RSPE CTIVA"? 
Maldonato - O confronto entre Psicanálise e Neurociências está produzindo reflexos conceituais, que põem em questão os princípios fundamentais da Psicanálise, exigem respostas às tantas falhas de explicação, provocam discussões e, por fim, contribuem para criar um clima favorável à pesquisa. As descobertas das Neurociênentrevista cias sobre os sistemas da memória implícita e declarativa [ou de longo prazo], entre outras, contribuem para aprofundar, no âmbito psicodinâmico, a pesquisa conceitual sobre os diversos níveis da experiência corporal, que, hoje, vai das esferas do recalque do inconsciente às pré-reflexivas não verbais do inconsciente não recalcado.

EM RELAÇÃO À PSICANÁLISE CLÁSSICA E À CONTEMPORÂNEA, HOJE TEMOS MUITAS CORRENTES DE PE NSAMENTO, ALGUMAS QUE SE COMPLETAM, OUTRAS QUE SE CONTRAPÕEM. COMO OBSERVA ESSA QUESTÃO? PODE SER CONSIDERADA UM BENEFÍCIO PARA UMA CIÊNCIA DEMOCRÁTICA OU UMA CONFUSÃO COMPLETA? 
Maldonato - É evidente para todos, até para os psicanalistas mais radicais na tradição, que um longo e glorioso período se encerrou. As tradicionais dicotomias interior-exterior, sujeito-objeto, dão lugar a uma visão mais centrada na relação entre intuição e experiência. Diferente da terapia psicanalítica tradicional, hoje, estamos diante de arquipélagos de terapias psicológicas de base teórica e clínica relacional. É preciso aceitar a transformação. Além disso, se hoje Freud visse um paciente sendo analisado como no início do século XX, ele ficaria desmoralizado. O grande psicanalista vienense acreditava numa Ciência capaz de se desenvolver, de se transformar. De qualquer maneira, todos devem procurar o próprio estilo de modo livre e criativo. Claro, sem excessos pós-modernos e muitas bricolagens. Sobretudo, entrando em contato com todo o resto. Para os mais jovens, não bastará mais, como nos meus tempos, estudar só os clássicos. Hoje, é preciso entrar em contato com o que aparece na Psicanálise contemporânea.

O confronto entre Psicanálise e Neurociências está produzindo reflexos conceituais, que põem em questão os princípios fundamentais da Psicanálise, exigem respostas às tantas falhas de explicação, provocam discussões e, por fim, contribuem para criar um clima favorável à pesquisa
SEGUNDO SUA AVALIAÇÃO, A PROBLEMÁTICA COLOCADA PARA AS NEUROCIÊNCIAS COGNITIVAS NO SÉCULO 21 SERIA BUSCAR UMA NOVA ALIANÇA ENTRE A FILOSOFIA DA MENTE E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM, A LINGUÍSTICA E A NEUROBIOLOGIA, A PSICOLOGIA E A LÓGICA, A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A CIÊNCIA COGNITIVA, PARA UM NOVO MODELO DE VIDA RELACIONAL. COMO CONSEGUIR ISSO? 
Maldonato - Não existe apenas um caminho. Para mim, isso parece ser o mais lógico e natural. Do contrário, a distância entre as disciplinas aumentará desmedidamente e cada um terá apenas uma (falsa) soberania sobre a própria e minúscula disciplina, sem entender nada do que está e se move em torno dela. Hoje, nenhum cientista, em sã consciência, pode deixar de olhar as diversas faces de um mesmo problema. Seria condenado, rapidamente, a um contundente fracasso. O caminho é o da colaboração entre as diversas faces do prisma, que é a própria natureza.

COMO AVALIA O TRABALHO DA FILOSOFIA DA MENTE NA PSICANÁLISE CLÍNICA? 
Maldonato - Há muitos aspectos interessantes desta colaboração, mas me parece que se encontra, ainda, em fase de compreensão recíproca. vamos esperar pelos desdobramentos futuros.

O DESAFIO PARA A CRIAÇÃO DE UMA NOVA CIÊNCIA DA MENTE É O DE CONCILIAR O ASPECTO DA OBJETIVIDADE COM TEMAS COMO EM- PATIA, INTERSUBJETIVIDADE, LIVRE-ARBÍTRIO E INTERESSES INDIVIDUAIS? 
Maldonato - você se refere a problemas e níveis diferentes. Mas o caminho é este que você sintetizou.

NA SEGUNDA PARTE DO LIVRO - A VIDA OCULTA DO CÉREBRO - VOCÊ AFIRMA QUE O CÉREBRO É, CONSTANTEMENTE, RELEGADO AO PAPEL DE MERA INSTRUMENTALIDADE. EM SUA OPINIÃO, ISSO OCORRE POR UM ERRO DE AVALIAÇÃO DA PSIQUIATRIA, POR EXEMPLO? 
Maldonato - Acreditamos erroneamente estar cientes da maior parte de nossas funções mentais. Ao contrário, grande parte dos processos nervosos é inconsciente. Nosso cérebro continua a funcionar durante o sono. Por outro lado, muitas funções mentais - da decisão à memória e à visão - ocorrem, em maior parte, em nível inconsciente. Claro, um inconsciente diferente do freudiano, mas, igualmente, fascinante e misterioso. Enfim, numerosas funções mentais se realizam sem nosso controle e sem que saibamos. Dos primeiros momentos do desenvolvimento da mente infantil à memória, aos desejos, às gratificações e aos processos criativos a esfera inconsciente da mente desempenha um papel fundamental e evidencia que, nem tudo o que acontece em nível cerebral, aflora na vida consciente.

QUAL O PAPEL DA PSICOBIOLOGIA NESSE PROCESSO? 
Maldonato - A Psicobiologia, disciplina originada da síntese entre Psicologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia, com o objetivo de estudar e descrever os mecanismos na base do comportamento, está trazendo uma contribuição fundamental para o estudo da mente humana. Estes caminhos, em colaboração com os novos métodos de mapeamento cerebral, fornecerão contribuições fundamentais.

COMO SE O MUNDO ESTIVESSE PARA ACABAR É A TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE DO LIVRO. NESTE MOMENTO, SURGE A QUESTÃO DA IDEIA MODERNA DE PÂNICO E TERROR, COMO UMA POSSÍVEL ESTÉTICA DO HOMEM NO SÉCULO 21. PODE EXPLICAR ESSE CONCEITO? 
Maldonato - Naturalmente, não temos aqui muito espaço para discutir este tema delicado. Mas, do meu ponto de vista, o pânico é a possibilidade de sentir o encontro com o nada. O problema terapêutico é transformar o ataque de pânico patológico em uma experiência de pânico, como experiência de libertação de núcleos de angústia profunda e, às vezes, indescritível. Mas não é o caso de entrar em níveis mais técnicos.
APROVEITANDO ESSE LINK QUE VOCÊ FAZ ENTRE CIÊNCIAS, FILOSOFIA, PSICOLOGIA E OUTRAS DISCIPLINAS, CABE A PERGUNTA: NO MUNDO MODERNO, OS ESTUDIOSOS ESTÃO CADA VEZ MAIS SE ESPECIALIZANDO EM UM DETERMINADO ASSUNTO. ISSO LIMITA O PENSAMENTO E IMPEDE QUE SE AMPLIE PARA OUTRAS APTIDÕES? O QUE É POSSÍVEL FAZER PARA QUE A MENTE NÃO IGNORE ESTÍMULOS PARA OUTRAS ÁREAS QUE NÃO A DA ESPECIALIDADE QUE A PESSOA ESCOLHEU? 
Maldonato - A especialização é, ao mesmo tempo, uma necessidade e um perigo. Eu diria que é um destino a ser seguido com inteligência. As disciplinas têm uma história relativamente recente. Nascem, de fato, por questões burocráticas. Hoje, o risco maior é que se liguem a dinâmicas de poder, que, muitas vezes, ofuscam e limitam o conhecimento dos problemas. Se, ainda, levarmos em conta que até mesmo a Ciência é, muitas vezes, derrotada por dinâmicas políticas, então, fica claro que os perigos podem ser desastrosos. Não se trata, apenas, da alocação dos recursos para determinados programas de pesquisa (que desde sempre acontece), mas da alocação de valores que, na Ciência, se torna uma questão, verdadeiramente, espinhosa.

VOCÊ FALA MUITO SOBRE O TEMPO E REFLETE SOBRE A CONDIÇÃO DO EU E DO MUNDO, DEFENDENDO A NECESSIDADE DE REAPRENDER A SENTIR EM UM TEMPO DE RENÚNCIAS E NECESSIDADES. COMO A MENTE PODE LIDAR E REAPRENDER COM ESSE PROCESSO? 
Maldonato - O tempo é a diferença da matéria em seu devir, mas, também, a imagem desse devir em uma consciência que o apreende. Compreender a fenomenologia do tempo permite atingir uma compreensão unitária e plural da mente humana. O caminho para alcançá-la é estreito e tortuoso, mas o único possível para recuperar uma relação natural com as coisas.

VOCÊ ACREDITA NA NEUROPLASTICIDADE?
Maldonato - Claro. Trata-se de uma propriedade fundamental de nossos neurônios, que permite ao sistema nervoso modificar a própria estrutura e a funcionalidade, de modo, mais ou menos, duradouro e dependente de outros eventos que os influenciam, como a experiência. Mas, aqui também, não seria o caso de entrar nos detalhes.

A MENTE HUMANA, FREQUENTEMENTE, RELACIONA O TEMPO COM O PASSADO, LEMBRANÇAS DE PE RDAS E UMA ESPÉCIE DE NOSTALGIA POR ALGUMA COISA NÃO CONQUISTADA. POR QUE CULPAMOS O TEMPO POR NOSSAS FRUSTRAÇÕES? 
Maldonato - Nossa vida é, sempre, uma transição entre 'não mais' e 'ainda não'. Se a isso acrescentarmos que a memória (até a memória do futuro) é mais infiel, então, compreendemos estar diante de um dos enigmas mais persistentes da consciência humana. Além disso, a pergunta sobre o tempo é a pergunta sobre a consciência. Nós poderemos responder só quando tivermos a solução para esse problema, que é, ao mesmo tempo, o mais misterioso e o mais familiar.

O FENÔMENO DAS REDES SOCIAIS MOSTRA QUE O SER HUMANO, POR SUA SUPE REXPOSIÇÃO, ESTÁ MAIS PREOCUPADO EM PARECER FELIZ PARA O OUTRO DO QUE SER, EFETIVAMENTE, FELIZ. O QUE ACHA DISSO? SERIA UMA FORMA DE ESCONDER OU FUGIR DAS ANGÚSTIAS MODERNAS? 
Maldonato - Parece-me que as redes sociais, em vez de felicidade, mostram mais angústia: de aparecer, de representar, de estar lá a todo custo. Parece-me uma perfeita estratégia de remoção do silêncio, da meditação, da contemplação, da reflexão silenciosa. Não as demonizo. Além disso, eu mesmo estou presente lá e faço uso delas para ficar em contato com tantos amigos. Minha impressão, todavia, é que daqui a pouco serão bem diferentes de como as conhecemos hoje.

EM QUE MEDIDA ESSA NOVA REALIDADE DA PROPAGAÇÃO DAS INFORMAÇÕES REFLETE E INFLUENCIA NO ENSINO DAS NOVAS GERAÇÕES? ESSES MECANISMOS DIGITAIS NÃO DEVERIAM AUXILIAR NA EDUCAÇÃO? NO ENTANTO, VOCÊ JÁ DISSE QUE O SISTEMA ESCOLAR DE HOJE NÃO PE RMITE QUE O PROFESSOR OU O ESTUDANTE, ISOLADAMENTE, EXPLOREM COM LIBERDADE O APRENDIZADO. ISSO NÃO É UM PARADOXO? 
Maldonato - Na realidade, eu queria dizer que uma educação funcional para uma sociedade anônima exclui os indivíduos dos circuitos da comunicação, da participação, da decisão. Ela os induz à apatia, ao distanciamento, à violência, à impotência e à Alienação. Ou seja, gera indivíduos com tendências à servidão política, à ditadura midiática. As redes (mesmo as sociais) permanecem, de fato, canais de comunicação, em que as possibilidades de feedback e, mais geralmente, de autorregulação, controle e input de acesso ficam bloqueados no sistema atual. Estamos diante de uma série de mal-entendidos culturais, a começar pela consideração difundida da inelutabilidade do primado da tecnologia, que se tornou quase uma espécie de ideologia oficial. É preciso estar atento! A escola - como concebida hoje - carrega consigo, com seus lugares-comuns e seu conformismo, o temível risco de se tornar uma doxa acrítica, subalterna à ideologia hegemônica e ao poder político.

A TECNOLOGIA, ATÉ MESMO POR SUA VELOCIDADE, NÃO PE RMITE O CHAMADO ÓCIO CRIATIVO. ALIÁS, EM SUA AVALIAÇÃO, QUAIS SERIAM OS BENEFÍCIOS DO ÓCIO CRIATIVO? 
Maldonato - A expressão "ócio criativo" é muito interessante e comunica bem. Mas me pergunto: o que quer dizer a apologia do ócio criativo no labirinto penitencial da pós-modernidade? Que sentido tem uma suposta liberdade num abrigo incontaminado, puro e imunizado? À parte que o elogio incondicionado ao ócio criativo, que colocado deste modo degrada o conceito nobilíssimo de trabalho, ainda tem os ares de uma tomada de posição favorável ao espaço elitista e aristocrático. É a ideia de uma liberdade como fim em si mesma. Não de uma liberdade que abre outros espaços de liberdade. Mas essa é outra história.


Fonte: Psique

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