Autor: Fernanda Ribeiro
Nos últimos 30 anos a medicina evoluiu de forma surpreendente: o genoma humano foi decodificado e foram criados meios de monitorar a atividade de circuitos neurais do cérebro humano. É espantoso pensar que, há menos de dois séculos, os tratamentos dispensados aos doentes mentais eram, em geral, semelhantes ao adotado pelo hospital de Bicêtre, que funcionou em Paris até meados do século 18 – verdadeira casa de horrores, a instituição abrigava enfermos, presidiários, inválidos, órfãos e loucos. Estes últimos eram praticamente abandonados à própria sorte.
Tal abordagem foi questionada por um alienista – como eram chamados os médicos que se empenhavam em conhecer doenças mentais e acompanhar pacientes – que assumiu a direção de Bicêtre, Phillipe Pinel (1745-1826). Ele separava doentes por tipo de “desvio” ou “alienação mental”. Assim, a partir dos manicômios, lugares onde os loucos eram internados para que sua doença evoluísse naturalmente, as patologias mentais começaram a ser reconhecidas, nomeadas e estudadas.
Na tentativa de sintetizar anos de conhecimento e de discussões em um tratado sobre a psiquiatria, a editora Manole lança Clínica psiquiátrica – A visão do Departamento e do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Em dois volumes, quase 2.300 páginas, especialistas analisam a evolução desse ramo da medicina e propõem uma interface com outras áreas de estudo da mente, como a neurociência, a psicologia e a psicanálise.
São 163 artigos, organizados em 10 seções pelos psiquiatras Euripedes Constantino Miguel, Valentim Gentil e Wagner Farid Gattaz. A seção “Psiquiatria e seus limites” inicia a obra. O leitor é introduzido na história dessa especialidade médica e em seus conceitos básicos. Também é discutida a relação dessa área com a neurocirurgia, a neurologia, a filosofia e a antropologia, entre outros campos de estudo. No artigo “Psiquiatria, psicologia e psicanálise”, em especial, o psiquiatra e psicanalista Ariel Bogochvol afirma que “tanto a psiquiatria como a psicologia têm longo passado, mas história curta”, mostrando que, desde a Antiguidade, pensadores vêm se dedicando à reflexão sobre a natureza humana – pensamento, linguagem, sentimentos, loucura –, mas somente ao longo do século 19 a psiquiatria se estruturou como um ramo especial da medicina e a psicologia se separou da filosofia, tornando-se uma ciência autônoma. A psicanálise surgiria muito depois, somente no século 20. A partir da distinção dos aspectos históricos e conceituais dessas três áreas, Bogochvol aborda o significado de “sintoma” para cada uma delas, discorrendo, por fim, sobre as principais correntes da psicanálise e seus criadores.
A segunda seção, “Vertentes do conhecimento”, aborda os aspectos biológicos da psiquiatria, como o desenvolvimento cerebral nas diversas fases da vida. Entre outros textos, o artigo “Ambiente familiar e transtornos mentais: uma visão da psicologia analítica”, escrito pelo psiquiatra Nairo de Souza Vargas, explica por que o ambiente de cuidado precoce tem influência decisiva no desenvolvimento da personalidade. O texto “Psiconeuroimunologia”, escrito em conjunto por vários cientistas do Instituto de Psiquiatria da USP, discute as descobertas desse novo campo da ciência, que tem menos de 30 anos. Os especialistas são unânimes em afirmar que da mesma forma que o estresse é capaz de influenciar o sistema imunológico, este também pode, de forma inversa, alterar comportamentos e emoções e até mesmo deflagrar transtornos psiquiátricos. Novos estudos têm enfatizado a importância de diagnosticar adequadamente quadros psiquiátricos associados a doenças como câncer e problemas cardiovasculares.
Como não poderia deixar de ser em um tratado de psiquiatria, há os capítulos que descrevem as grandes síndromes e formas de controlar seus sintomas, além de interessantes seções sobre ensino e pesquisa em psiquiatria e estruturação de uma rede de saúde pública. A presença de dados e questionamentos relativos à psiquiatria no Brasil diferencia Clínica psiquiátrica das traduções para o português das grandes obras de referência desenvolvidas em outros países. A última seção, “Ética em psiquiatria e psiquiatria forense”, por exemplo, analisa as contribuições que conhecimentos nesse ramo da medicina podem trazer para a atividade pericial, com comentários adaptados à legislação brasileira.
Parte dos leitores considerará de grande interesse as explicações científicas detalhadas. Outros se concentrarão nas orientações clínicas do dia a dia. A maioria, entretanto, certamente reconhecerá um tratado atualizado, para o uso de profissionais e de estudantes de diversas áreas. Nas palavras do autor do prefácio, James F. Leckman, psiquiatra e professor de psicologia da Universidade Yale, a publicação “fornece bases sólidas que capacitarão o leitor a adquirir o conhecimento atualizado necessário para as práticas inovadoras e modernas da psiquiatria”.
Fonte: Revista Mente e Cerebro
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