Powered By Blogger

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Não existe uma pílula para cada problema da vida

Líder da equipe que elaborou o manual usado ao redor do mundo para diagnosticar transtornos neurológios (DSM-IV), o psiquiatra americano Allen Frances questiona o que chama de "epidemia de TDAH"

Donna Manning
O psiquiatra Allen Frances afirma que a natureza humana é bastante estável, mas os sistemas de diagnósticos não são
Qualquer mudança no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), referência mundial da Psiquiatria, pode tirar milhões de pessoas do campo da normalidade. Consciente disso, o psiquiatra americano Allen Frances, líder da equipe que elaborou a redação da quarta e mais importante revisão da publicação, o DSM-IV, recusou praticamente todas as sugestões de transtornos a serem incluídos no manual. Mas com relação ao déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), achou pertinente afrouxar um pouco os critérios para facilitar sua identificação entre as meninas.
Com as mudanças nos critérios do diagnóstico, em 1994, Frances calculava que a incidência de casos fosse aumentar de forma muito discreta, mantendo-se dentro dos 2% a 3% da população infantil. Mas os ajustes na definição somaram-se a uma combinação de fatores sociais e culturais que as garras oportunistas da indústria farmacêutica não deixaram escapar. E o índice de diagnósticos do transtorno disparou no mundo todo, chegando a quadruplicar nos Estados Unidos.
Frances não nega sua parcela de culpa. Por isso foi incapaz de observar passivamente o fenômeno do hiperdiagnóstico - do qual o TDAH é um bom exemplo, mas não o único.
Abandonou a tranquilidade da aposentadoria para sair em defesa da normalidade. Lançou-se a um trabalho de conscientização da necessidade de repensarmos os limites que separam o normal do patológico. Limites que ficaram ainda menos nítidos com o lançamento da quinta revisão do manual (DSM-5), em 2013, trazendo uma série de novos distúrbios e, no caso do TD

Donna Manning
Os idosos costumam fazer uso excessivo das benzodiazepinas, que causam confusão mental e problemas de memória

Como a indústria farmacêutica estimula a venda de medicações psicotrópicas em países onde a propaganda direta ao consumidor é proibida, como no Brasil?

Allen Frances: Não sei se isso vale para o Brasil, mas nos Estados Unidos a indústria ainda gasta uma fortuna com marketing dirigido a psiquiatras, pediatras, clínicos gerais, além de pais e professores. E os problemas que criamos nos EUA geralmente são rapidamente espalhados ao redor do mundo.


Em Saving Normal, com lançamento no Brasil previsto para março do ano que vem, Frances faz um apelo pela busca da normalidade perdida: questiona o fato de estarmos transformando problemas sociais em distúrbios psiquiátricos tratados com pílulas

Você acredita que a popularidade da teoria do "desequilíbrio químico", reforçando a falta de uma substância no cérebro, que só pode ser "reposta" com medicação, afasta as pessoas de soluções que dependem mais de suas próprias capacidades de cura?

Frances: A indústria farmacêutica gasta bilhões divulgando sua teoria do desequilíbrio químico e lançando uma pílula para cada padrão de problema. Mas não há um orçamento para o marketing da resiliência humana.


Você acredita que o estilo de vida moderno é, de alguma forma, responsável pelo aumento nas taxas de doenças mentais?

Frances: A vida sempre foi difícil e nós sempre respondemos às diferentes dificuldades com resiliência. A natureza humana é bastante estável, mas os sistemas de diagnósticos não são. Pequenas mudanças em como distúrbios mentais são definidos resultam em grandes mudanças nos índices - que na verdade não significam nada.


Sobre o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), você já mencionou que "o livro como foi escrito é diferente do livro como é interpretado". Esse mau uso do manual pode ser considerado como a principal causa da inflação diagnóstica ou a expectativa dos pacientes também mudou e eles hoje pressionam mais os médicos a prescrever psicotrópicos?

Frances: A indústria farmacêutica é a maior responsável pela inflação dos diagnósticos. Ela transforma doença em marketing, vende problemas mentais e pressiona o consumo de pílulas até para situações que não respondem a tratamentos fármacos. Os médicos com frequência prescrevem medicamentos rapidamente e displicentemente para tratar problemas que eles não compreendem em pacientes que mal conhecem. E, sim, os pacientes realmente querem uma solução rápida para tudo. Mas não existe uma pílula para cada problema da vida.

Há 25 anos, a indústria de tabaco estava na mesma posição que hoje está a indústria farmacêutica - exercia grande influência sobre autoridades e ficou iludindo a sociedade durante décadas


O grupo etário que mais consome medicamentos psicotrópicos é o da terceira idade, certo? Poderia explicar o que está por trás desse fato?
Frances: As pessoas dessa faixa etária fazem uso excessivo das benzodiazepinas (ansiolíticos normalmente usados para ajudar no sono) que causam, entre outros problemas, quedas, confusão mental e problemas de memória. E muitos também recebem antipsicóticos, que reduzem a expectativa de vida. Na maioria dos casos, as drogas que são receitadas como forma de acalmar a agitação poderiam ser evitadas se mais tempo fosse dedicado a eles e com mais contato humano.

Gostaria de abordar o impacto do efeito placebo no tratamento psiquiátrico. Qual o papel da expectativa do paciente na sua recuperação?
Frances: O placebo é a melhor medicação que já existiu, com o maior e mais favorável custo-benefício. É o que melhor funciona em problemas mais leves. O paradoxo é que, enquanto a maioria das pessoas acredita que precisa de medicação sem na verdade precisar, aqueles com problemas mais severos, que, de fato, se beneficiariam dos remédios, não são tratados.

O índice de adolescentes e pré-adolescentes medicados com antidepressivos é muito alto. Esse tratamento é seguro e eficaz nessa fase?
Frances: Na maioria das vezes eles não são eficazes na infância e adolescência e podem causar agitação e irritabilidade, aumentando o risco de suicídio e violência.

Que alternativa a esses tratamentos você recomendaria a adolescentes com alto nível de ansiedade?
Frances: A Psicoterapia está sendo muito pouco usada e pode ser muito eficaz. Exercício físico e envolvimento em esportes também trazem ótimos resultados.

Muitas escolas exigem um diagnóstico psiquiátrico para fornecer adaptações às necessidades das crianças com dificuldade. Essa sistematização no lugar da diferenciação contribui para o exagero dos 
diagnósticos? 

Imagem: Shutterstock
A indústria farmacêutica gasta bilhões divulgando sua teoria do desequilíbrio químico e lançando uma pílula para cada padrão de problema. Mas não há um orçamento para o marketing da resiliência humana

Frances: É um fator importante, mas não a causa primária da epidemia de falsos TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Ao invés de encarar problemas no sistema educacional causados por salas de aula com muitos alunos e pouca atividade física, a sociedade está rotulando indevidamente crianças ativas e com frequência tratando-as com estimulantes. O melhor preditor do diagnóstico de TDAH é o mês do aniversário: o mais novo da sala tem uma chance muito maior de ser rotulado que o mais velho. É ridículo tornar a imaturidade na infância uma doença e medicá-la. Nos Estados Unidos, nós gastamos quase U$ 10 bilhões ao ano com drogas para TDAH - recurso que seria muito mais bem gasto se fosse investido em melhorias nas escolas.

Na avaliação de Frances, os grandes fabricantes de medicamentos são os maiores responsáveis pela inflação dos diagnósticos
Os fabricantes dos estimulantes conhecem os efeitos de longo prazo do uso da medicação na infância?

Frances: Ninguém sabe os efeitos, em longo prazo, de mergulhar cérebros ainda imaturos em estimulantes poderosos por vários anos. Sem querer e de forma irresponsável, estamos fazendo uma experiência mundial descontrolada com as crianças, usando-as como ratos de laboratório sem seu consentimento e sem que seus pais sejam devidamente informados antes de concordar. E como você disse, estimulantes são usados quase como doces. Eu defendo uma avaliação lenta e muito cautelosa do TDAH e o uso do tratamento farmacológico apenas como último recurso.

É comum a prescrição de estimulantes por clínicos gerais ou pediatras?
Frances: Nos Estados Unidos, 60% das drogas para tratar TDAH são prescritas por médicos de "cuidados primários", que geralmente têm pouco tempo e pouco conhecimento em relação a transtornos psiquiátricos. Não fazem o acompanhamento sistemático e são frequentemente influenciados pelos representantes das marcas de medicamentos.

FEITO POR QUEM JÁ ESTEVE DO OUTRO LADO
Lançado em 2013 nos Estados Unidos, Saving Normal ("salvando o normal", em tradução livre) é o que o autor Allen Frances define de uma revolta contra o descontrole dos diagnósticos psiquiátricos, o DSM-5, a indústria farmacêutica e a medicalização da vida cotidiana. Não se trata de um desabafo qualquer. É feito por quem já esteve do outro lado - fez parte da construção do sistema de diagnóstico, ao assumir a frente da redação do DSM-IV - e acompanhou de perto as investidas da indústria para conquistar e até comprar médicos e enganar pacientes.
Um dos mais respeitados nomes da Psiquiatria no mundo todo, Frances, que também comandou o Departamento de Psiquiatria da Universidade de Medicina de Duke, mostrou que não deve nada a ninguém ao expor alguns absurdos dos bastidores da Medicina. Ao relatar as falhas do sistema de diagnóstico, que acabam favorecendo a ação da indústria em fazer todos acreditar que estão doentes, ele mostra o que está por trás da explosão de diagnósticos de diversos transtornos psiquiátricos.
Ainda antes da publicação da quinta revisão do DSM, ele sabia que a sociedade estava sob o risco de se expor ainda mais à medicação desnecessária, pois já havia vivenciado essa experiência, que ele chama de "dolorosa". "Apesar dos nossos esforços para evitar a exuberância de diagnósticos, o DSM-IV vem desde então sendo usado de forma errada, estourando a bolha dos diagnósticos. Mesmo tendo sido modestos em nossos objetivos, meticulosamente obsessivos em nossos métodos, e rigidamente conservadores com nosso produto, nós falhamos em prever e prevenir três novas falsas epidemias de transtornos em crianças - autismo, déficit de atenção e hiperatividade e bipolaridade", narra em seu livro. Como consequência desse descontrole, diz, as pessoas estão confiando, e dependendo de forma excessiva, em antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos e remédios para dormir. "Estamos nos tornando uma sociedade de viciados em comprimidos. Um em cada cinco americanos consome pelo menos uma droga para problemas psiquiátricos", completa.
Saving Normal já foi traduzido para 12 idiomas e será lançado em português pela Versal Editores. A previsão de lançamento é março do ano que vem.

Os médicos com frequência prescrevem medicamentos rapidamente e displicentemente para tratar problemas que eles não compreendem em pacientes que mal conhecem. E os pacientes realmente querem uma solução rápida para tudo

De que forma o DSM -IV contribuiu para o aumento dos diagnósticos de TDAH e qual era a real intenção da sua equipe?

Frances: Afrouxamos um pouco os critérios para facilitar o diagnóstico entre as meninas, que geralmente apresentam mais problemas de desatenção sem a hiperatividade. Uma pesquisa de campo muito cuidadosa previu o aumento de cerca de 15% na quantidade de diagnósticos. Mas a incidência quadriplicou, especialmente por causa do marketing da indústria farmacêutica. Em 1997, três anos após a publicação do DSM-IV, as companhias surgiram com novas drogas caras e patenteadas e coincidentemente também ganharam o direito de fazer propaganda diretamente ao consumidor (nos Estados Unidos). Isso deu à indústria os meios e métodos para vender o TDAH como doença, para que pudesse divulgar suas pílulas de estimulantes.


Depois da publicação do DSM -5, em 2013, podemos dizer que as mudanças nos critérios de diagnóstico do TDAH favoreceram o aumento ainda maior da incidência?

Frances: Os critérios foram afrouxados ainda mais, facilitando particularmente o diagnóstico indevido em adultos. Isso é inacreditavelmente estúpido e leva ao abuso massivo de diagnóstico como um meio de se conseguirem drogas estimulantes para uso recreativo ou aumento de performance.


Inúmeros problemas psiquiátricos podem piorar com o uso de estimulantes, como ansiedade, psicose e problemas do sono
Você defende que a prevalência real de TDAH flutua entre 2% e 3%. Já que não existe comprovação biológica do distúrbio, o que deveria ser levado em consideração para se certificar de que a criança pertence a esse pequeno grupo? E para esses, a medicação é sempre necessária?
Frances: Severidade, cronicidade, início precoce, prejuízos, histórico familiar. Ainda assim, apenas uma parte dos que se encaixam nessa categoria severa e clássica pode se beneficiar do estimulante. Para essas crianças não existe uma regra geral sobre quanto tempo deve ser mantida a medicação - depende da severidade dos sintomas. Mas deve-se testar a retirada do estimulante de tempos em tempos.


Que tipos de problemas psiquiátricos podem piorar com o uso de estimulantes?

Frances: Transtornos de humor, ansiedade, psicoses, problemas do sono e desordens relacionadas ao uso de substância.

Os antipsicóticos também estão ficando muito populares entre crianças e adultos com diferentes diagnósticos. Existem estudos suficientes sobre a eficácia e segurança dessas drogas?

Frances: Antipsicóticos devem ser usados apenas em casos psiquiátricos seveseveros. Ao invés disso, eles são prescritos com frequência e sem muito critério, sendo que, além de reduzir a expectativa de vida, podem causar aumento de peso e diabetes.


O placebo é a melhor medicação que já existiu, com o maior e mais favorável custo-benefício. É o que melhor funciona em problemas mais leves

Como podemos saber quando confiar nos dados de uma pesquisa relacionada a saúde mental e tratamento farmacológico?

Frances: O melhor é ficar cético com relação aos dados de todas as pesquisas. A maioria não se confirma. Apenas aquelas que atestam a eficácia dos medicamentos - as positivas - são publicadas. E os estudos promovidos pela indústria valem menos do que nada.


Sobre o uso excessivo de psicotrópicos, você enxerga alguma mudança nesse cenário em curto prazo?

Frances: Há 25 anos, a indústria de tabaco estava na mesma posição que hoje está a indústria farmacêutica - exercia grande influência sobre autoridades e ficou iludindo a sociedade durante décadas. Mas a consciência do público levou a grandes e rápidas mudanças. Acredito que o mesmo pode acontecer em relação aos fármacos. Como disse Abraão Lincoln, "você pode enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas por muito tempo, mas não pode enganar todas as pessoas por muito tempo".


Você está planejando o lançamento de seu próximo livro?

Frances: Sim. Será sobre a felicidade e seu lado sombrio.


Fonte: Revista Psique


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.