Para Freud, a disposição de cuidar do outro em estado de desamparo seria a origem de um tipo de identificação
Disponível em: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/solidariedade_sem_transcendencia_.html. Acesso em: 03 jun. 2014
Uma antiga questão na filosofia da ética e na psicologia moral é saber se seria possível explicar a origem do sentimento de solidariedade sem recorrer a algum pressuposto transcendente, seja ele de natureza teológica, como Deus ou a imortalidade da alma, seja de compleição metafísica, como a universalidade da razão ou a liberdade essencial do homem.
O caminho tomado pela psicanálise, nesta matéria, é ambíguo. Freud falava em um sentimento de espontânea prestatividade diante de um outro que é percebido como próximo de nós (Nebnmensch). Essa disposição de cuidar do outro quando este é percebido em estado de desamparo, vulnerabilidade ou dependência seria a origem de um tipo de identificação, que permanece no sujeito e faz com que ele inverta esta orientação para o cuidado daqueles que ele reconhece vulneráveis.
Até aqui Freud caminha ao lado de Adam Smith, ao reconhecer no altruísmo uma reversão e um retorno disfarçado do egoísmo, ou de Marcel Mauss, que postulava a universalidade da lei que nos obriga a dar, receber e retribuir. Ou seja, nada de sentimento genuíno e desinteressado de auxílio e colaboração, mas “amor por si” disfarçado em ajuda e devoção ao outro.
Com Lacan, além da reversão narcísica da passividade do outro, esse sentimento é uma fonte de gozo. E o gozo é um mal porque comporta o mal do próximo. Se a grama do vizinho é mais verde, é lá que vamos armar nosso próprio inferno particular. Percebemos em nosso semelhante um gozo-a-mais, excessivo, perturbador, que é o gozo que ignoramos ou não admitimos em nós mesmos, como na homofobia, sexismo, ou ressentimento de classe. Haveria uma solidariedade do gozo, mas ela é percebida como nociva, porque inevitavelmente impõe uma fantasia sobre outra. Esta colusão desastrosa entre narcisismo das pequenas diferenças elevado à condição máxima de reconhecimento cria uma solidariedade, mas é uma solidariedade pelo mal, como queria Sade ao interpretar a natureza como disposição à destruição.
Contudo, nem só de narcisismo e supereu vive o homem. A gênese da solidariedade não precisa derivar da decepção, pois sempre é possível e gozoso descobrir más intenções por trás dos melhores atos. Uma solução está em imaginar que o ato solidário vem antes da solidariedade. Ele a cria e não a segue ou respeita como um valor pré-constituído. Este ato imponderável, anterior e de certa maneira indiferente ao próprio sistema de interesses, cria suas próprias condições de possibilidade. Talvez fosse isso que Lacan procurava em seu fracassado seminário sobre o ato analítico.
Fonte: Scientific American Mente Cérebro
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