O objetivo fundamental de quem pretende contribuir com o desenvolvimento e as mudanças de outra pessoa consiste em se valer de todos os recursos conhecidos para ajudá-la
Flávio Gikovate é médico-psiquiatra, psicoterapeuta, conferencista e escritor. Atualmente apresenta o programa No Divã do Gikovate, na rádio CBN, e dedica a maior parte do seu tempo à clínica. Trabalha com psicoterapia breve.
Apesar de atuar como psiquiatra e psicoterapeuta há quase 50 anos, de repente me deparo com uma
constatação que já deveria ter me incomodado há muito mais tempo: como é difícil mudar! E por que é tão difícil? Questões como essa, próprias de um espírito mais prático que teórico como o meu, deveriam ter sido objeto de atenção há mais tempo.
Nunca subestimei as dificuldades que todos encontramos ao tentar mudar qualquer comportamento consolidado, tanto os hábitos, compulsões e vícios, como os padrões de conduta ética, os diversos graus de imaturidade emocional, assim como os distúrbios de personalidade de todo o tipo. Ao mesmo tempo, nunca subestimei o "efeito placebo", ou seja, o fato de que o uso de determinados comprimidos inertes, assim como a presença de um terapeuta respeitado, podem interferir positivamente nos resultados. Assim, os textos teóricos que escrevi, extraídos de uma prática bem sucedida, nunca me fizeram perder o senso crítico; nunca achei que eles eram garantia de que eu havia feito descobertas extraordinárias e definitivas.
Penso na Psicologia como uma ciência e, como tal, como um processo em contínua transformação, no qual tudo é datado e não existem verdades absolutas. Tudo o que nos parece inquestionável hoje poderá ser - e será - ultrapassado amanhã. Essa é a riqueza e a beleza de um trabalho inesgotável. A bem da verdade, muitas das minhas ideias de 30 anos atrás já foram abandonadas por mim. Sim, porque penso que, dada a velocidade que o conhecimento adquiriu, 30 anos de hoje equivalem a mais de 100 anos no passado. É conveniente mantermos a mente "porosa", isto é, sempre receptiva a novas informações. Dados novos, especialmente aqueles que estão em contradição com o que acreditávamos até então, gerarão um estado mental inquieto em virtude das dúvidas substituírem antigas certezas. Esse estado pode ser um tanto sofrido, mas é criativo e nos impulsiona na busca de novas hipóteses que serão o fundamento das verdades parciais seguintes.
Freud viveu numa época e em um contexto tão diferente do nosso e isso tem que ser levado em conta
Cem anos atrás
Sendo essa minha forma de pensar, não posso me submeter com docilidade a doutrinas construídas há cerca de 100 anos. Sou profundo admirador do Freud e do seu trabalho pioneiro. Porém, não cabe, hoje, tomá-lo ao pé da letra. Ele viveu numa época e em um contexto tão diferente do nosso e isso tem que ser levado em conta. Penso em nós, os humanos, como seres biopsicossociais. O contexto psicológico e social do início do século 20 é extraordinariamente diferente do atual. Freud achava que as mais importantes influências aconteciam ao longo dos 5 primeiros anos de vida e acho que ele tem razão, pois os estudos de Neurociência confirmam que uma boa parte das conexões neuronais se constroem nessa fase inicial da vida. Assim, cabe comparar o dia a dia das crianças daquele tempo com o que acontece hoje.
Há 30 anos, o convívio familiar era a base das relações e do aprendizado das crianças durante a infância
É fato que o convívio familiar era a base das relações e do aprendizado das crianças durante a infância. Elas iam para a escola pelos 6-7 anos de idade. Brincavam na rua, com amigos ou parentes que se comportavam de um modo muito similar ao que vivenciavam em suas casas. Não sofriam outras influências externas, posto que os meios de comunicação eram escassos. A quantidade de brinquedos era limitada e muitos eram de fabricação caseira. Como comparar esse mundo, que, de certa forma, se estendeu até os anos da minha infância (fim dos anos 1940 e 1950) com o que vivemos na atualidade?
A televisão chegou, ao menos aparentemente, para agregar as famílias em torno de seus programas. Era assim no início; hoje, nas casas de classe média, existe um aparelho por pessoa. Os equipamentos eletrônicos de todo o tipo são de manipulação fácil e as crianças estabelecem enorme ligação com eles desde o segundo ano de vida. Sofrem a influência de tudo o que assistem, afora o fato de que frequentam escolas desde os 18 meses de idade. Brincam com enorme quantidade de produtos. No caso das meninas, que brincavam com bonecas cujo formato era o dos bebês - como que a prepara-las para a maternidade - de uns 30 anos para cá brincam com a Barbie, uma boneca com as formas de uma mulher adulta e linda: sonham em ser como ela! E não é raro que se tornem adolescentes frustradas, portadoras de importantes sentimentos de inferioridade em virtude de suas imperfeições, todas elas comparadas com o protótipo ideal de uma boneca que chegou e fez - e faz - tamanho sucesso porque encontrou o universo feminino em plena revolução.
Como imaginar que as figuras de pai e mãe tenham o peso quase absoluto que tinham? É claro que ainda são parte muito relevante do universo emocional das crianças. É evidente que continuam a existir rivalidades e ciúmes entre pai e filho e entre mãe e filha - afora, é claro, a inevitável rivalidade entre irmãos. Penso até que são mais intensas do que no passado, posto que o fim da hierarquização tradicional da família permite a expressão mais evidente de todas as emoções que povoam o ambiente familiar que, diga-se de passagem, perdeu a solidez e estabilidade dos tempos em que os casamentos eram "para toda a vida".
Não acho que foram apenas as tensões internas no seio das famílias que se tornaram mais explícitas e conscientes. Penso o mesmo das questões eróticas em geral, das fantasias que, na Viena de 100 anos atrás, povoavam o inconsciente daqueles que viviam na época vitoriana, cerceados por preconceitos de todo o tipo. A chegada da pílula anticoncepcional, assim como o avanço profissional das mulheres que se iniciou antes mesmo da libertação sexual dos anos 1960, modificou completamente o contexto ético em que temos vivido. Quase nada é, hoje, proibido. As famílias relutam, mas acabam aceitando a vida homossexual de seus filhos, evento tratado como normal e, até certo ponto, natural - é bom lembrar que no início do século XX a homossexualidade era tratada, inclusive por Freud, como perversão; e não porque ele fosse um conservador, mas sim porque a circunstância era outra; hoje, ele certamente não pensaria dessa forma.
PARA SABER MAIS
Desconstruindo Freud
Uma das ideias que defendo no livro que acabei de lançar é a de que não existe mais o inconsciente freudiano. O conteúdo do material inconsciente tornou-se muito menor tanto por força de vivermos numa sociedade muito menos repressiva quanto por força das próprias descobertas da Psicanálise e que nos desvendaram muitos dos mistérios que nos habitavam. Aliás, penso na Psicanálise como um importante motor das próprias mudanças sociais, tendo influenciado muito o surgimento desse mundo novo, ao menos do ponto de vista dos costumes. Assim, ela cumpriu com louvor seu papel em mais esse aspecto.
É indiscutível que existem tensões e contradições em nossa subjetividade. Isso não significa que um dos seus braços seja consciente e outro inconsciente; e nem mesmo que um seja racional e outro emocional; ou ainda um seja desprovido de valores éticos e o outro funcione como um censor moral. Penso que somos divididos em todos os ingredientes: podemos ter dois modos de pensar sobre o mesmo assunto, emoções contraditórias e juízos de valor que se chocam entre si, assim como emoções em confronto com aspectos mais racionais ou éticos. Ou seja, em nossa subjetividade acontece de tudo. E mais, que muitos desses dilemas são conscientes, sendo que um dos ingredientes se torna inconsciente apenas naqueles casos em que não nos vemos em condições de lidar com ele. Assim, podemos admirar, amar e invejar uma mesma pessoa - e aqui não é raro que a inveja desapareça da consciência. Podemos ansiar e temer a felicidade sentimental; podemos ansiar por uma quase "fusão" romântica e gostar da preservação de nossa individualidade sem que um dos ingredientes tenha que ser inconsciente. Uma criança pode sentir rivalidade sentimental com seu pai ou mãe do mesmo sexo - e isso será ainda mais explícito e claro no caso de "padrastos" e enteados. E assim por diante.
Não é bom esquecer das extraordinárias mudanças no modo de viver das famílias, todas elas relacionadas com a independência econômica das mulheres. Os divórcios se tornaram muito mais frequentes, o número de filhos diminuiu muito e não são raros os lares em que a mulher é a mais importante provedora (hoje ocupam 60% das vagas nas universidades do mundo inteiro). O estilo de vida é essencialmente unissex, homens e mulheres compartilham atividades domésticas e a identidade de gênero, tão forte no passado, vem se esvaindo. Um mundo assim novo exige reflexões à altura de tantas transformações, apesar do respeito que acho justo manter pelos personagens extraordinários que consolidaram a ciência da Psicologia.
A chegada da pílula anticoncepcional, assim como o avanço profissional das mulheres, modificou completamente o contexto ético da sociedade
Podemos nos ver divididos entre os anseios mais comuns próprios do meio social em que vivemos - e que chamo de "consciência oficial" - tais como a busca de uma condição material privilegiada, uma vontade de sucesso, destaque e ser objeto de admiração por parte das outras pessoas; e outro ponto de vista, mais humanista e igualitário, próprio de nossa subjetividade e em desacordo com o padrão usual, parte do que tenho chamado de "consciência maior". A consciência maior é a que caracteriza nossas verdadeiras convicções, nem sempre passíveis de serem exercidas por falta de corage m, de condições objetivas e até mesmo em função das contradições internas em que nos vemos envolvidos.
Contradições
A pessoa pode, por exemplo, ansiar por uma vida material mais discreta e simples ao mesmo tempo que convive num meio que gera expectativas de manifestação ostensiva de sucesso financeiro; se não se achar com forças para enfrentar eventuais desdobramentos negativos para sua atividade derivados de um posicionamento diferente dos que a cercam, tenderá a aceitar viver de acordo com a consciência oficial mesmo não sendo essa sua real vontade.
A consciência maior é a que caracteriza nossas verdadeiras convicções, nem sempre passíveis de serem exercidas
Por vezes a contradição é mais sutil, envolvendo uma suposta vontade que não pertence efetivamente à pessoa. O melhor exemplo é o de um rapaz de bem, preocupado com os direitos dos outros, e que, observando o comportamento de muitos dos seus colegas, pensa querer agir como os mais cafajestes e, com isso, ter sucesso sexual com muitas moças. Percebe-se como um perdedor nessa área por não ser capaz de chegar nelas e mentir dizendo-se apaixonado apenas com o intuito delas permitirem mais facilmente a abordagem erótica. Uma avaliação mais acurada mostra que esses moços não se sentem e nem se sentirão à vontade agindo dessa forma, ou seja, em oposição aos seus sentimentos éticos que os obrigam a ter preocupação com a dor que iriam causar nas moças. O que acontece, de fato, é um erro em suas ideias acerca do bom paquerador; essa competência é própria dos mais egoístas, dos que se preocupam mais com seu prazer do que com o direito dos outros. No fundo, o moço de bem não quer ser cafajeste - apesar de que gostaria de ter o acesso que eles têm às moças, o que é pouco viável.
Em alguns casos, a mudança acontece graças à coragem para enfrentar, de forma paulatina e gradual, certas situações fóbicas
Os exemplos de contradições internas são indescritíveis, de modo que, para mim, prevalece a ideia de que temos dois níveis de consciência - sendo que em cada um deles existem elementos racionais, emocionais e éticos - em substituição às formulações psicanalíticas tradicionais. Minha forma de pensar privilegia, de modo claro, nossos aspectos racionais. Penso, assim como alguns dos discípulos dissidentes de Freud (em particular O. Rank, ver acima), que é pela via do fortalecimento da razão que obtemos força, vontade e potência para nos encaminharmos no trajeto das mudanças. É por meio dela que podemos nos apropriar de novos dados acerca de nós mesmos, do meio em que vivemos e de nossas ponderações éticas; de posse dessas informações, poderemos definir condutas, ações que poderão ser repetitivas, mas que também poderão ser inovadoras, capazes de alterar o rumo da nossa forma de ser, agir e pensar.
Variáveis terapêuticas
Quando penso a respeito das estratégias terapêuticas, aquelas que poderão ser utilizadas por quem deseja mudar - com ou sem a ajuda de um profissional especializado na área -, minha mente é extremamente eclética. Assim, não penso que em ciência se deva defender doutrinas, pontos de vista, teorias. O que interessa é a prática e se existe mais de uma razão que tenha determinado a maneira como nos tornamos "nós mesmos", devem existir mais de uma razão para sermos capazes de nos modificar. Reafirmo meu ponto de vista: somos seres biopsicossociais! Temos que nos habituar a pensar com as três variáveis ao mesmo tempo sem desconsiderar nenhuma delas e sem exagerar na importância de cada uma. Conforme o tipo de problema com o qual nos defrontamos teremos que refletir e considerar modos de trabalhar diferentes.
Para distúrbios em que existam importantes componentes orgânicos (certos quadros depressivos, alguns distúrbios alimentares, tendência ao alcoolismo etc.) cabe nos valermos dos recursos farmacológicos disponíveis. Para o tratamento de quadros fóbicos, para as mudanças de hábitos muito consolidados e que determinaram "rotas pavimentadas" em nosso sistema nervoso, talvez seja melhor utilizarmos técnicas comportamentais. Quando estamos diante de problemas existenciais, dificuldades na área sentimental, problemas de socialização e outros similares, penso que o melhor é nos valermos das técnicas dinâmicas e existenciais. Para o estresse profissional inevitável, quem sabe o melhor seja a utilização das estratégias orientais tradicionais (meditação, exercícios respiratórios, yoga) além da recomendação de exercícios aeróbicos. E assim por diante.
Penso que o objetivo fundamental de quem pretende contribuir com o desenvolvimento e as mudanças de uma outra pessoa - paciente, parceiro sentimental, filho, amigo... - consiste em se valer de todos os recursos conhecidos com o intuito de ajudar aquela criatura a realizar seus projetos evolutivos. Se existem diversos pontos de vista acerca de como fazê-lo é porque todos os meios utilizados têm sua valia. Além disso, temos sempre que nos lembrar do "efeito placebo" e que esse incremento no resultado depende muito da convicção de quem ajuda e também de sua sincera intenção de contribuir positivamente para a consecução do projeto de mudança. Posturas dogmáticas costumam ter mais compromisso com teorias do que com os resultados práticos; e isso, a meu ver, é um grave desvio de rota em uma área tão limitada e ainda incipiente como é o caso da Psicologia.
Penso no trabalho psicológico como tendo sempre um caráter de pesquisa, próprio de quem percorre um
território ainda pouco conhecido e um tanto inóspito. Assim, é fundamental assumir a postura de quem está diante de uma criatura peculiar, levando a sério a ideia de que cada pessoa é única e, por isso mesmo, não pode ser facilmente encaixada em um rótulo diagnóstico. A postura mais útil, para aquele que pretende ajudar uma pessoa a se conhecer melhor e ajudá-la a evoluir, é a de um ouvinte não excessivamente comprometido com doutrinas e disposto a registrar suas observações como um pesquisador que se vê diante de algo sempre inesperado e desconhecido. O trabalho terapêutico torna-se, assim, fascinante e eternamente renovado. Eventuais conclusões gerais, doutrinas teóricas de todo o tipo, têm que nascer da escuta criteriosa de cada criatura que tenhamos oportunidade de conhecer de forma desarmada e sincera. Só os ouvintes (terapeutas ou não) que não sejam críticos e dogmáticos terão a oportunidade de criar um contexto sereno e livre para que a pessoa se sinta confortável para falar sem censura e, só por isso, já ganhar algum tipo de autoconhecimento.
As pessoas mudam quando compreendem com profundidade e sinceridade as causas e mecanismos de uma determinada conduta
Em certos casos, as pessoas mudam quando compreendem com profundidade e sinceridade as causas e mecanismos perpetuadores de uma determinada conduta; e mais que isso: se dispõem a enfrentar eventuais sofrimentos e dificuldades envolvidas no processo de mudança; não é raro que as perdas aconteçam bem antes do momento em que aconteçam as recompensas derivadas da nova postura. Em outros casos, a mudança acontece graças à coragem para enfrentar, de forma paulatina e gradual, certas situações fóbicas, ou seja, situações nas quais se instalou um medo irracional. Outras vezes as mudanças acontecem em virtude de um acontecimento inesperado, uma experiência que desorganiza a estrutura de pensamento vigente na subjetividade de uma dada pessoa.
Poderia citar vários exemplos disso que Franz Alexander (ver ao lado), o pioneiro no uso das técnicas breves de psicoterapia dinâmica (em seu livro Terapêutica Psicanalítica), chamou de "experiência emocional corretiva". Porém, para honrar sua autoria, cito o exemplo dele e por ele extraído do livro "Os Miseráveis" de Vitor Hugo. Ele fala da experiência do personagem principal, Jean Val Jean, que foi preso por ter roubado castiçais de prata da igreja em que havia sido acolhido. Quando os policiais o conduzem de volta para a igreja, o padre age de um modo inesperado: diz aos policiais que ele, padre, havia doado as peças e que, em absoluto, elas tinham sido roubadas. Jean Val Jean fica tão atordoado e impactado pela atitude do religioso que se transforma; abandona seu estilo de vida, torna-se um cidadão digno e depois um importante revolucionário. Muitos desses "milagres" acontecem durante as consultas terapêuticas de qualidade, assim como nas boas relações entre pessoas em todos os contextos. Nunca se deve subestimar o impacto sofrido por uma pessoa que sempre se sentiu preterida e pouco considerada, quando cruza com alguém - valorizado por ela - que a prestigia e valoriza. E principalmente quando a ama de verdade.
Fonte: Revista Psique