Que espaço subjetivo é esse onde habita não só a versão que criamos de nossa própria história, mas também sínteses do que apreendemos do encontro com cada pessoa com quem nos relacionamos?
A ideia de intimidade costuma ser associada ao que existe de mais profundo e intenso em cada um de nós, mas não está restrita a esses aspectos: ela oferece um espaço simbólico que comporta paradoxos e ambivalências, sem que seja necessário haver integração desses aspectos. Trata-se de uma espécie de morada subjetiva na qual o livre trânsito entre diversas perspectivas fornece as bases para a constituição do self (que, grosso modo, podemos entender como aquilo que define uma pessoa, sua individualidade, sua essência). A intimidade abriga a versão que criamos de nossa própria história, mas também uma síntese da história de cada pessoa com quem nos relacionamos. Ao mesmo tempo, coexistem nela nossos sonhos, devaneios e interpretações que fazemos do mundo.
Para propor uma definição, convém considerar duas perspectivas: a primeira evoca o funcionamento no qual a intimidade está relacionada ao sujeito voltado para si mesmo, numa relação em que o estar só prepondera. Em uma segunda versão, são relevados tanto o caráter relacional quanto as trocas com o outro. O íntimo seria, assim, o que liga dois sujeitos a partir de uma relação mais profunda.
É exatamente por meio dos conteúdos internos e íntimos que se torna possível discernir o mundo externo. Para o filósofo, poeta e ensaísta francês Gaston Bachelard, “o exterior e o interior são ambos íntimos, estão sempre prontos a inverter-se, a trocar suas hostilidades”. Nesse sentido, é exatamente nessa região, onde cada sujeito procura se manifestar e ao mesmo tempo se esconder, que se situa a intimidade como elemento que contém os paradoxos. E mantém o humano como um ser entreaberto – por natureza hesitante – dada a vastidão de experiências que precisa conter. Tudo isso nos leva a pensar que a intimidade contribui para a delimitação do espaço psíquico interno e favorece a autonomia.
UM LUGAR NO GRUPO
É importante distinguir diferentes perspectivas no surgimento da intimidade, levando em conta a relação desse processo com a constituição do psiquismo. Inicialmente, o ambiente familiar oferece ao bebê a experiência de intimidade na indiferenciação e na fusão com a mãe e, em um sentido mais amplo, com o pai, os irmãos e outras pessoas da família. Por isso, ela é chamada grupal ou primária, uma vez que se dá no contexto dos primeiros vínculos.
Nessa fase inicial, o psiquismo do bebê, ainda imaturo, é sustentado pelo dos pais, que acolhem as necessidades da criança. O corpo da mãe e o do bebê relacionam-se sensorialmente, marcados pela presença um do outro. Essa experiência permite que o bebê registre os primeiros signos de uma relação e crie sua primeira estética, embasada em ritmos, cadência, textura e odor do corpo materno. A memória desse momento permitirá à criança criar novas estéticas ao longo da vida.
Trata-se de uma etapa na qual o bebê oscila entre a satisfação da intimidade grupal e o preenchimento narcísico, voltado para si mesmo. Nessas circunstâncias o recém-nascido antecipa as possibilidades de viver os laços grupais família-bebê, sem que haja ainda essa presença real. É, portanto, experienciando a dimensão grupal desse momento que a criança, paulatinamente, consegue se apropriar da intimidade familiar e se diferenciar, criando seu lugar no grupo.
A partir daí, ela entra no estágio da intimidade no qual é possível estar com o outro sem depender diretamente dele para existir. Podemos falar de uma espécie de “dependência relativa”, de acordo com a concepção do psicanalista inglês Donald Winnicott, na qual o eu e a identidade adquirem seus fundamentos e passam, gradualmente, a referenciar as expressões da criança ao longo do desenvolvimento.
Após ter vivenciado a fase da ilusão de criar o mundo e o outro, o bebê encontra a realidade e a desilusão. Nesse momento, o outro ganha contorno próprio, na mesma medida em que a criança também começa a adquirir autonomia. A intimidade passa então a ser relativa e torna-se necessário que a criança suporte a descontinuidade das atenções parentais.
Assim, surge um distanciamento necessário e com ele a frustração com a diferença do outro, o conflito e o desejo – recursos indispensáveis ao processo de subjetivação. Emergem também os sonhos e as fantasias, como elementos que favorecem a criação do espaço pessoal e a inscrição na diferença sexual e na cadeia geracional.
Internalizado o objeto-grupo, a criança passa a se relacionar com mais autonomia, nomeando a si mesma e os outros a partir da diferença que marca agora suas expressões individuais. Suas experiências originárias terão repercussões importantes na relação que ela mantém com os íntimos. A psicanalista francesa Elisabeth Darchis ressalta que as primeiras emoções estéticas deixam na vida psíquica de cada um de nós experiências e traços suscetíveis a reaparecer, podendo ser ressignificados em contextos e situações muito importantes ao longo da vida. Trata-se, mais uma vez, da estética favorecendo o encontro com o outro – no qual emergem os reflexos das primeiras ilusões e da onipotência perdida.
REPERCUSSÕES NA CLÍNICA
É preciso considerar, no entanto, que nem sempre esse processo de diferenciação da criança é bem-sucedido. E justamente quando não é surgem problemas psíquicos importantes que aparecem, na clínica, sob a forma de sintomas.
Em situações em que não é oferecida a sustentação necessária pelos pais e pelo grupo, a criança pode permanecer na indiferenciação como forma de se defender de angústias arcaicas, deflagradas pela ausência de figuras afetivamente significativas. A constituição da intimidade secundária é bloqueada e o sujeito passa a funcionar no nível de um narcisismo primário, nos laços íntimos patológicos, ligados às lacunas no processo de ilusão e de desilusão.
Ele pode tornar-se dependente da mãe ou mesmo do grupo de origem, uma vez que não obteve os recursos dos quais precisava para criar suas fronteiras. Teve, portanto, dificuldades de delimitar os espaços: interno--externo, dentro-fora, público-privado. Assim, se defende colocando o outro à distância ou utilizando uma proximidade excessiva para não ser separado. Frequentemente, essas duas defesas coexistem ou são utilizadas de forma alternada, dando origem a laços paradoxais.
Quando se trata de uma intimidade patológica, o sujeito tende a recorrer a um funcionamento baseado no registro de suas necessidades ou nas que imagina serem as do objeto de seu afeto. Nessas circunstâncias, o outro é invadido, violentado e tiranizado. Tudo isso configura um quadro de dificuldades que, muitas vezes, inviabiliza a criação de uma nova família. Ainda para Elisabeth Darchis, quase sempre essas problemáticas parentais são caracterizadas pela confusão entre as necessidades infantis e narcísicas dos pais e os anseios da criança real. Por uma impossibilidade de se diferenciarem, os pais podem ficar encapsulados na intimidade primária, sendo incapazes de favorecer o processo de desilusão, diferenciação e autonomia do filho. Circunstâncias como essas mantêm pais e filhos numa proximidade abusiva que, em casos extremos, pode chegar até a cenas de incesto ou mesmo levar a uma situação de abandono, já que, na realidade, as figuras parentais permanecem indisponíveis para o filho.
Em outros termos, é possível dizer que, se houver dificuldade de viver a indiferenciação na infância, na vida adulta as pessoas (uma vez pais) enfrentarão grandes dificuldades, tendo em vista as pendências que deixaram em relação a suas famílias de origem, já que muitas vezes não foi possível fazer a diferenciação nem tampouco criar o contorno dos lugares e das funções de cada um em seu grupo originário. Nesse sentido, não será possível oferecer ao filho uma intimidade grupal que facilite sua diferenciação.
Quando chegam à clínica, essas problemáticas exigem do analista o que o psicanalista Jean-Pierre Durif-Varembont chamou de “ética da proximidade”. Segundo o professor de psicologia e ética na Universidade de Lion 2, é fundamental que a dupla paciente-analista mantenha distante das tentações de uma aproximação excessiva. Levando em conta a ética à qual se refere, o autor indaga qual a posição subjetiva que o profissional deve adotar para acolher a intimidade do paciente, tendo em vista que, dependendo das condições, o íntimo pode se desvelar ou se esconder.
Para ele, confirmando Freud, o íntimo só pode emergir no espaço da transferência, o qual depende de princípios técnicos, mas, sobretudo, de uma análise pessoal que permita ao analista oferecer a proximidade necessária, sem que haja intrusão. É, assim, por meio da ética da proximidade, que podem emergir conteúdos da vida psíquica do paciente, sem que haja ameaças de conteúdos advindos de um contrato narcísico construído com base em confidências e conselhos. Essa ética, portanto, impede certa confusão entre a intimidade que necessariamente surge no setting e eventuais conteúdos narcísicos. Assim, é possível abordar, em análise, questões íntimas, que colocam em causa o verdadeiro desejo do paciente.
Maria Consuelo Passos é psicóloga, psicanalista, pós-doutora em psicanálise de família e professora de pós-graduação em psicologia clínica da Universidade Católica de Pernambuco.
Fonte: Scientific American Mente Cérebro
Disponível em: http://www2.uol.com.br/ vivermente/noticias/nuances_ da_intimidade.html. Acesso em: 13 jan. 2016
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