Vamos começar com um pequeno questionário. Quantos dos distúrbios a seguir você conhece? Taijin kyofusho, hikikomori, hwa-byung e reação psicótica ki-gong. Se jamais ouviu falar de nenhum deles, não se incomode. A culpa pode ser do meio cultural em que você vive. As duas primeiras são doenças mentais bastante endêmicas no Japão; as duas últimas são comuns na China. E os transtornos psíquicos – ou, pelo menos, os rótulos que damos para eles – diferem de acordo com as diversas culturas.
Mas será que estes e outros distúrbios não ocidentais são realmente distintos daqueles de que temos notícia no Brasil, em outros países da América Latina, Estados Unidos e Europa? Ou todas as doenças mentais, por mais estranhas que soem, são apenas variações de problemas que nos parecem mais familiares como depressão e esquizofrenia?
Até o momento, as evidências sugerem que o meio em que vivemos e os valores de nossa sociedade podem influenciar a expressão das doenças mentais. Também é inegável que em culturas muito diversas se apresentam transtornos psicológicos totalmente diferentes, o que nos leva a pensar que a interação entre o mundo interno e o ambiente em que vivemos pode ser decisiva para a manifestação de um ou outro sintoma.
A importância do assunto vai além da discussão teórica ou acadêmica. Geralmente, os psicoterapeutas consideram as diferenças culturais em seu tratamento, mas é comum concluírem que a depressão, por exemplo, parece mais ou menos a mesma em toda parte, com pequenas exceções.
Se as denominadas síndromes ligadas à cultura – transtornos mentais específicos de determinadas sociedades – são meras variações de distúrbios ocidentais, então os profissionais de saúde mental em países do Ocidente podem, com segurança, continuar a usar os conhecimentos existentes sobre os transtornos que lhes são familiares para melhor cuidar dos pacientes. Em contraste, se alguns problemas psiquiátricos são distintos daqueles que aparecem em países ocidentais, psicólogos e psiquiatras podem ter a necessidade de iniciar do zero a pesquisa para tratá-los de forma mais eficiente.
Foi no século passado que o papel da cultura nas doenças mentais mudou de um extremo a outro. Antropólogos, sociólogos e psicólogos culturais concluíram que havia uma enorme diversidade de distúrbios em todo o mundo e se mostraram céticos sobre quaisquer tentativas de classificá-los. Porém, esse ponto de vista sofreu um sério revés em 1976, quando a antropóloga Jane Murphy, da Universidade Harvard, relatou fortes evidências de que algumas síndromes, de fato, pareciam transpor limites culturais.
Ela examinou duas sociedades bem distintas – um grupo de iorubas na Nigéria e outro de esquimós inuítes, que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia, perto do estreito de Bering, que pouco haviam experimentado contato com culturas modernas. No entanto, essas populações tinham nomes para transtornos que pareciam extremamente semelhantes à esquizofrenia, dependência de álcool e outras psicopatologias. Por exemplo, os inuítes usavam o termo kunlangeta para descrever o homem que mente, prejudica, engana e rouba, é infiel à esposa e não obedece aos mais velhos – um quadro muito parecido com o do
psicopata ocidental. Quando Murphy perguntou a um dos inuítes como o grupo tradicionalmente lidava com essa pessoa, ele respondeu que “alguém poderia empurrá-la no gelo quando ninguém estivesse olhando”. Aparentemente, os inuítes não apreciam mais os psicopatas do que nós.
Mais tarde, as pesquisas corroboraram as conclusões de Murphy. Mas a ideia de que algumas doenças mentais estão presentes tanto no Ocidente quanto entre outros povos não elimina a possibilidade de que alguns distúrbios possam existir apenas em certas sociedades. Na verdade, em 1994, a Associação Psiquiátrica Americana introduziu na quarta edição do Manual de diagnóstico e de estatística dos transtornos mentais (DSM-IV) um anexo com25 síndromes ligadas à cultura.
Mas tão logo surgiu a complementação, muitos cientistas contestaram a noção de que as síndromes ligadas à cultura sejam condições singulares, argumentando que algumas ou talvez até mesmo todas possam ser variantes de transtornos já catalogados. Por exemplo, alguns caçadores de focas na Groenlândia experimentam o kayak angst, caracterizado por sentimentos de fobia do oceano e intensa necessidade de segurança. Embora o kayak angst apareça em algumas listas de síndromes ligadas à cultura, é muito semelhante à
síndrome do pânico e à agorafobia, marcadas por medo extremo de situações das quais seria difícil escapar no caso de surgimento repentino de algum perigo.
Outra possível enfermidade ocidental “disfarçada” é a taijin kyofusho, que consta no anexo do DSM-IV. Trata-se de um distúrbio de ansiedade, comum no Japão, caracterizado pelo medo extremo de incomodar as pessoas com a aparência ou com o odor do próprio corpo. Taijin kyofusho talvez seja uma forma asiática de fobia ou ansiedade social na qual as pessoas temem se comportar de maneira inadequada ou cometer gafes. Como os japoneses são mais preocupados com a harmonia e a coesão de grupo que os ocidentais, a patologia pode ser exacerbada na sociedade oriental, que é especialmente sensível ao julgamento alheio.
Algumas síndromes ligadas à cultura, entretanto, costumam ser bastante distintas dos transtornos ocidentais para merecer critérios diagnósticos. Pessoas com o curioso distúrbio koro, encontrado principalmente no Sudeste Asiático, temem que seu órgão sexual encolha ou desapareça. O terror às vezes se espalha, causando pânico em massa, como uma histeria coletiva. Já os malaios acometidos pela síndrome amok, quase todos do sexo masculino, ao receber uma desfeita reagem mostrando-se primeiramente ausentes e meditativos, mas, em seguida, sobrevêm atos descontrolados de violência.
Outro transtorno incomum, o amor 2-D, recentemente reportado no Japão, faz com que os homens desenvolvam o que parece ser um relacionamento amoroso com personagens de animação femininas; alguns chegam a carregar consigo, por todos os lugares, fotos e desenhos dessas personagens. Não se sabe ao certo se existem semelhanças subjacentes entre essas doenças misteriosas e patologias psiquiátricas ocidentais bem documentadas. O koro, por exemplo, poderia ser um tipo específico de
hipocondria, mas a hipótese não chegou a ser suficientemente pesquisada.
Divergências científicas à parte, os especialistas concordam que a cultura às vezes contribui de forma significativa na configuração da expressão de uma doença mental. Consequentemente, os psicoterapeutas deverão considerar a possibilidade de estudar melhor as influências culturais exercidas sobre as doenças mentais e incorporá-las a seu plano de tratamento. Enquanto isso, os cientistas deveriam usar testes de personalidade e de laboratório para investigar as causas e as manifestações das síndromes ligadas à cultura e determinar quais desses transtornos, se é que existem, são distintos dos encontrados no Ocidente. Caso algumas dessas síndromes sejam realmente únicas, os profissionais da saúde mental talvez precisem pesquisar e passar a utilizar intervenções psicológicas que se distingam de modo significativo das que reconhecemos.
As faces da loucura
Algumas doenças mentais não têm contrapartida direta no Ocidente. Os cientistas debatem se essas afecções diferem dos problemas que afligem os ocidentais ou se elas incluem facetas ocultas que, por fim, as ligam a doenças que conhecemos tão bem.
Fonte: Scientific American Mente Cérebro